SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Depois de uma década marcada por expansão de vagas, abertura de escolas e ingresso de novos perfis no curso, a medicina no estado de São Paulo assiste à consolidação de uma nova "fisionomia": está mais feminina, mais jovem e um pouco mais diversa, embora ainda distante da representatividade racial da população paulista.
Em 2025, as mulheres se tornaram maioria entre os médicos do estado, alcançando 52% do total, segundo o estudo Demografia Médica do Estado de São Paulo, lançado nesta quarta (10), realizado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
As projeções indicam que esse percentual feminino pode chegar a 70% em dez anos. Elas já predominam em 22 das 55 especialidades, com forte presença em áreas como pediatria, ginecologia e obstetrícia, medicina de família e comunidade, dermatologia e endocrinologia.
Para Mario Scheffer, professor de medicina preventiva da USP e coordenador do estudo, trata-se de uma mudança estrutural. "As mulheres se consolidaram como maioria. É uma transformação muito relevante, mas que deve vir acompanhada de ações para reduzir desigualdades de gênero", afirma.
Ele lembra que médicas ganham menos que colegas homens, mesmo em condições semelhantes de carga horária e especialidade, e ocupam menos posições de liderança em escolas e serviços de saúde. "Há desigualdade de gênero na remuneração e na ocupação de cargos. E elas ainda são minoria em 33 especialidades."
A feminização também traz efeitos sobre o perfil de atuação. Pesquisas internacionais apontam maior adesão feminina às especialidades próximas da atenção primária e melhor desempenho em indicadores de comunicação e relação médico-paciente.
Ao mesmo tempo, explica Scheffer, persistem desafios: jornadas reduzidas, menor adesão a plantões e barreiras de acolhimento em áreas cirúrgicas. "Alguns países discutem o risco de redução de profissionais em especialidades onde elas são minoria, se não houver mudanças na cultura e na estrutura da formação", afirma.
Outra marca da nova medicina paulista é o rejuvenescimento. Mais de um terço dos médicos do estado tem 35 anos ou menos. Esse movimento está ligado à explosão de cursos: em dez anos, São Paulo passou de 47 para 87 escolas de medicina, responsáveis por mais de 10,4 mil vagas anuais.
Mas a inclusão social, um avanço celebrado por especialistas, não tem sido uniforme. Entre estudantes, a proporção de negros subiu de 8% para 13% em uma década, e a de egressos de escolas públicas, de 21% para 35%.
O impulso, porém, veio majoritariamente das universidades públicas, que aplicam políticas de reserva de vagas. Já nas privadas, responsáveis por 92% das vagas em 2025, a mudança é mínima.
"Há risco de freio na inclusão. A maior parte das vagas está em escolas privadas, que não adotam políticas robustas de equidade", afirma Scheffer. Mesmo com avanços, São Paulo ainda forma menos estudantes negros do que a média nacional ?e muito menos do que seria proporcional à população.
A desigualdade se reflete também no mercado de trabalho. Dados sobre cirurgiões mostram que menos de 7% atuam exclusivamente no SUS, enquanto 26% trabalham apenas no setor privado. A dupla prática é regra para quase 70%.
São Paulo, que tem a maior cobertura de planos de saúde do país (40% da população), absorve boa parte dos especialistas no setor privado, deixando o SUS dependente de profissionais jovens e em formação.
"Os serviços privados que não atendem o SUS absorvem enormemente a força de trabalho especializada", diz Scheffer. "Mesmo com aumento de especialistas, eles não necessariamente estarão disponíveis para a maioria da população."
Essa reconfiguração ocorre em meio à expansão acelerada da população médica: o estado deve saltar de 197 mil médicos em 2025 para 340 mil em 2035.
Para Scheffer, a boa notícia da diversidade convive com incertezas estruturais. "A feminização, o rejuvenescimento e o aumento da presença de negros são avanços. Mas ainda precisamos enfrentar desigualdades, melhorar a formação e garantir que essa nova medicina atenda às necessidades da população."