SÃO PAULO, SP E FLORIANÓPOLIS, SC (FOLHAPRESS) - O crescimento acelerado na oferta de cursos de medicina gerou um descompasso entre a graduação e vagas em programas de residência, etapa essencial para a formação de especialistas.
A escassez empurra médicos recém-formados para especializações lato sensu, cursos que independem de autorização do MEC (Ministério da Educação) e não garantem RQE (Registro de Qualificação de Especialista), tido pelo mercado como requisito indispensável para o exercício da profissão.
Segundo dados do MEC, de 2018 a 2024, as vagas de graduação em medicina aumentaram 25%, enquanto o crescimento das oportunidades para residência ficou em apenas 9%. Em 2024, havia 24 mil vagas autorizadas para o primeiro ano de residência, ante as 50 mil vagas anuais para graduação em medicina.
A última edição do Enare (Exame Nacional de Residência) mostra que a concorrência se acirra ainda mais a depender da especialidade, ao mesmo tempo, algumas áreas seguem com baixa procura ou vagas ociosas. O processo seletivo, em outubro de 2025, registrou 87 mil inscritos para cerca de 6.000 vagas.
Os programas mais concorridos foram medicina esportiva, com 59 candidatos por vaga, otorrinolaringologia (51,3) e neurocirurgia (48), enquantor adioterapia teve a menor procura, com 3,9 candidatos por vaga.
A maior parte das vagas de residência se concentram nas capitais, abrangendo 62% dos estudantes, segundo dados da Demografia Médica Brasileira, pesquisa conduzida pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). Sul e Sudeste concentram 70% dos programas no país.
Mário César Scheffer, coordenador da pesquisa, afirma que a concentração de vagas de residência dificulta a fixação de médicos no interior. Apesar de o Brasil registrar um avanço na interiorização das vagas de graduação, a ausência de programas de residência nos locais de formação leva à migração dos egressos.
Com o acesso restrito à residência médica, Scheffer aponta duas consequências imediatas: crescimento do número de médicos generalistas e aumento da procura por cursos de especialização sem titulação. O Brasil tem hoje mais de 240 mil médicos sem registro de especialização, o maior número da história.
Entre os médicos que buscam se especializar mas não participam de um programa de residência, cresce a demanda por cursos de pós-graduação lato sensu.Tais cursos não concedem RQE e possuem baixo nível de regulamentação, visto que não passam pelo processo de aprovação do MEC.
Além disso, cursos dessa categoria podem ser oferecidos nas modalidades presencial, a distância e híbrida, com carga horária mínima de 360 horas. Até 2024, havia 2.148 cursos categoria ativos, 41,2% na modalidade a distância, segundo a Demografia Médica Brasileira.
Médicos com cursos lato sensu têm se apresentado indevidamente como especialistas, prática que se tornou comum na rede privada de saúde, diante da escassez de profissionais de algumas áreas.
César Eduardo Fernandes, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), afirma que médicos não especialistas que atuam em uma especialidade provavelmente não têm a formação necessária. "Atuar sem a formação exigida expõe os pacientes a risco", diz.
Para Raphael Einsfeld, diretor de Medicina no Centro Universitário São Camilo, há também um fenômeno de posicionamento digital entre médicos, que, sendo titulados ou não, visam construir sua autoridade online como especialistas.
"Há médicos hoje preocupados em serem reconhecidos nas redes sociais, não necessariamente pela sua competência, mas pela sua capacidade de atingir pessoas. Com esse posicionamento, o público entende que aquelas pessoas são as pessoas referência na área, quando na verdade é apenas marketing", afirma.
Diante do aumento do contingente de médicos com pós-graduação sem registro de especialista, foram criadas novas associações para representar os interesses dessa comunidade, entre elas a Abramepo (Associação Brasileira de Médicos com Expertise de Pós-graduação).
Em janeiro de 2025, diante da proposta da instituição de flexibilizar a obtenção do título de especialista, o SFT (Supremo Tribunal Federal) julgou que a Abramepo não tem legitimidade para alterar os critérios de obtenção de RQE.
Com a decisão, permanece a regra de que o título só pode ser emitido por sociedades de especialidade reconhecidas pela AMB ou por programas de residência credenciados pela CNRM (Comissão Nacional de Residência Médica).
"Eles montaram 54 sociedades de especialidade fictícias, copiando inclusive nosso estatuto e regimento. Defendem que é preciso ?democratizar? o título de especialista e acabar com a suposta reserva de mercado da AMB e das sociedades de especialidade. Tudo isso à margem da lei", afirma César Eduardo Fernandes.
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POR QUE AS VAGAS DE RESIDÊNCIA NÃO AVANÇAM NO RITMO DA GRADUAÇÃO?
Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo apontam que a desproporção entre a oferta de vagas de graduação e residência se deve, principalmente, aos custos e à complexidade da estrutura hospitalar exigida para a pós-graduação.
Outro fator decisivo foi a onda de processos judiciais abertos por faculdades com o objetivo de driblar os editais da lei do Mais Médicos. Sancionada em 2013, a lei funciona como uma espécie de licitação para abrir novos cursos apenas em locais definidos como prioritários pelo Estado.
"Os cursos que receberam autorização para abertura via liminar judicial não são obrigados a ofertar vagas de residência médica aos seus egressos", diz Raphael Einsfeld.
Ele explica que para resolver o problema, seria preciso equiparar todos os cursos por meio de uma portaria, tornando a residência obrigatória, ou então oferecer financiamento às instituições para custear o programa. Até 2016, a lei do Mais Médicos exigia vagas de residência proporcionais ao número de formados em medicina, mas o dispositivo foi revogado no mesmo ano.
Além da carga horária mínima, que totaliza cerca 2.800 horas por ano, é vetado aos programas de residência a cobrança de mensalidade. Ao invés disso, a instituição responsável precisa conceder uma bolsa mínima de R$ 4.000 ao estudante, além de auxílio moradia.
"Na graduação, cada aluno gera a receita de R$ 10 mil por mês em turmas de 30 a 40 estudantes. Já a residência representa um custo para as instituições, e cada hospital recebe apenas dois ou três residentes, com carga de 60 horas semanais", explica Silvio Pessanha, vice-presidente do grupo educacional Yduqs.
COMO VERIFICAR SE SEU MÉDICO É REALMENTE ESPECIALISTA
1. Consulte o cadastro no CFM
Acesse o site do Conselho Federal de Medicina e entre na página "Busca por Médicos". Com o nome completo do profissional ou o número do CRM, você visualiza a ficha cadastral.
2. Veja se ele tem RQE
O Registro de Qualificação de Especialista confirma que o médico concluiu residência ou teve o título reconhecido pela sociedade da especialidade. Se o profissional não tiver RQE, o campo "Especialidades/Áreas de Atuação" aparecerá como "Médico sem especialidade registrada".
3. Cheque o que ele divulga nas redes sociais
Pelas regras do CFM, médicos só podem anunciar especialidade se informarem o número do RQE, além do CRM, na descrição do perfil.
4. Desconfie de termos vagos
Expressões como "especialista em?" sem RQE, ou cursos livres vendidos como formação, não substituem a residência médica.