BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) - Há exatos dez anos, completados nesta sexta-feira (12), uma maratona de negociações climáticas terminou em festa. No centro de exposições de Le Bourget 195 países assinaram o Acordo de Paris. O documento histórico mudou a percepção mundial sobre a mudança climática e estabeleceu parâmetros para avaliá-la.
Uma década mais tarde, graças a eles, é possível perceber que a situação não é boa.
Fruto de jornadas incansáveis da diplomacia francesa, a COP21 foi desenhada para dar certo. Estratégias de todo tipo foram usadas para evitar que as conversas se perdessem. Até uma tradição zulu entrou em campo para forçar as negociações.
No documento final, compromissos inéditos sobressaíram: os países deveriam "perseguir esforços" para manter o aquecimento do planeta "bem abaixo de 2°C" em relação aos níveis pré-industriais, idealmente em 1,5°C; os países estipulariam as próprias metas para alcançar o objetivo, mas seria obrigatório publicá-las.
Mais do que isso, os signatários reconheciam que era preciso reduzir as emissões de gases de efeito estufa e se comprometiam a fazê-lo, mesmo que em proporções diferentes, pois essa era a única saída para o problema. "Responsabilidades comuns, mas diferenciadas."
Uma leitura rasa de termômetros e estudos atuais apontaria para o fracasso do acordo dez anos mais tarde. Contabilizadas as metas atuais informadas pelos países, as chamadas NDCs (contribuições nacionalmente determinadas, na sigla em inglês), o mundo caminha para chegar de 2,3°C a 2,5°C mais quente em 2100.
As emissões aumentam e podem alcançar outro recorde neste ano, o que faz cientistas e a ONU estimarem que o planeta não escapará do "overshooting", quando não será mais possível alcançar a trajetória em direção ao 1,5°C apenas com corte de emissões. Emissões negativas, que retirem dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa da atmosfera, é tarefa por enquanto inviável em escala global.
Ruim com Paris, pior sem o acordo. O mundo estaria na trajetória de 3,9°C não fosse a feliz e concatenada série de episódios de há dez anos.
A começar pela decisão de manter a COP21 em Paris semanas depois do múltiplo ataque terrorista à capital francesa, que deixou 130 mortos e quase 400 feridos no dia 13 de novembro. François Hollande defendeu a manutenção do evento como forma de reforçar a unidade do país. Mais de 150 chefes de Estado prestigiaram o então presidente francês na abertura da conferência.
Trazer os líderes para o começo da negociação, o que não ocorria antes, foi a primeira de muitas estratégias lançadas pelos franceses para fazer o acordo avançar. A ideia era evitar o ocorrido em Copenhague, em 2009, quando mandatários começaram a trocar farpas em público comprometendo a reta final das negociações.
Em Le Bourget, nos subúrbios de Paris, o escritório da presidência francesa da COP21 foi instalado estrategicamente em cima das instalações do UNFCCC, o Painel do Clima da ONU. Laurent Fabius liderava uma equipe de 60 negociadores que tinha à disposição até pequenos quartos de repouso.
Várias dinâmicas de diálogo foram implementadas. A última instância de negociação foi trazida da África do Sul, "indabas", uma tradição zulu de reunir os mais velhos para resolver disputas entre comunidades. Na versão francesa, os grupos eram formados para procurar caminhos alternativos nos momentos de grande divergência.
Não foram poucos. Na quarta-feira da segunda semana, foi necessário apelar para os chefes de Estado. Barack Obama ligou para Xi Jinping, e Hollande para um sem número de mandatários. Segundo Peter Betts, negociador do Reino Unido e da União Europeia para o clima, EUA e China vinham fazendo inúmeras bilaterais durante a conferência.
"Por um lado, era claramente bom que eles estivessem conversando. Por outro, o que eles estavam falando?", escreveu Betts em um livro póstumo publicado neste ano na Inglaterra ?o diplomata morreu em 2023 vítima de um tumor cerebral.
O primeiro rascunho completo do acordo saiu no dia seguinte. Ao contrário de muitos colegas europeus, Betts condenou o documento, alertando para o fato de que a previsão de os países desenvolvidos disponibilizarem US$ 100 bilhões anuais não era factível.
Havia muitas disputas. Uma das mais difíceis era o limite de aquecimento de 1,5°C, determinado pela ciência como patamar razoável para manter a saúde do planeta. Não era novidade a necessidade de alcançar o chamado "net zero", emissões líquidas zeradas, previstas desde a Eco-92, no Rio, a mãe de todas as conferências climáticas.
O que surgiu em Paris foi a ideia de dar um prazo para o objetivo, 2050, como no fim acabou acontecendo. Para ambientalistas, porém, perseguir o "net zero" a longo prazo tiraria o foco da necessidade ainda mais urgente de baixar as emissões em 10 ou 15 anos. Números atuais de emissões e aquecimento mostram que eles tinham um ponto.
Betts conta que os EUA e aliados eram contra a imposição do limite de 1,5°C, assim como as nações em desenvolvimento, que em público empurravam a responsabilidade para os mais ricos. O pleito vinha na verdade dos países mais vulneráveis à elevação do nível do mar.
O rascunho seguinte proposto pelos franceses buscou uma redação malabarista e inteligente para enfrentar o problema. O objetivo passaria a ser limitar o aumento da temperatura "bem abaixo de 2 °C", enquanto se "perseguem esforços" para atingir 1,5°C.
O único país a se posicionar contra o parágrafo foi a Arábia Saudita, que desde então se transformou na principal voz de oposição a avanços climáticos. O "mapa do caminho" para o fim dos combustíveis fósseis proposto pela presidência brasileira na última COP, em Belém, foi a última vítima do grupo de petroestados que os sauditas lideram.
Em Paris, as negociações acabaram superando o impasse. Na manhã do último sábado, em lance quase teatral, Holland apareceu em Le Bourget para comemorar a conclusão do acordo cuja última versão ainda não havia sido lida pelos negociadores.
SAÍDA À FRANCESA
Horas mais tarde, o anúncio de que o documento havia sido assinado ainda teve que driblar um último obstáculo. Advogados do governo americano perceberam que os diplomatas do país haviam deixado passar no texto um "devem" no lugar de "deveriam" em um parágrafo sobre obrigações de países desenvolvidos.
O argumento da delegação americana chefiada por John Kerry era de que o presente do indicativo, que denota obrigação, no lugar do futuro do pretérito, que expressa condicionalidade, não seria aprovado pelo Congresso do país. Países vulneráveis e a Nicarágua classificaram a manobra como golpe.
Com o acordo já aprovado, rever o texto estava fora de cogitação. Outra saída à francesa surgiu então: foi um erro de digitação, creditado a algum negociador cansado.
No aniversário de dez anos, a festa é comedida. Discussões sobre os formatos das COPs e a falta de um caráter vinculativo para as metas são ponderadas com a corrida tecnológica e econômica que o acordo gerou. Se Paris não foi suficiente, ao mesmo tempo colocou o mundo em uma trajetória sem retorno para longe dos combustíveis fósseis.
O aquecimento global continua longe de uma solução e eventos extremos se tornam mais frequentes. O acordo, com todas suas limitações, expõe os maiores suspeitos.
Ranking de desempenho diante da crise climática elaborado pelas entidades ambientais Germanwatch, NewClimate Institute e CAN traz a Dinamarca em quarto lugar. Não há país com desempenho suficiente para alcançar as três primeiras colocações.
O Brasil está na 27ª posição, ameaçada agora pelo desmonte do licenciamento ambiental liderado pelo Congresso. A Arábia Saudita, que nem publicou sua NDC, está em último.