SALVADOR, BA, RIO DE JANEIRO, RJ E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Antes do seu aniversário de 90 anos, que acontece em maio de 2026, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) lançou um plano para o período até 2030 com a promessa de modernizar a instituição na era digital.
A proposta prevê integração de sistemas e bancos de dados, uso de inteligência artificial própria e produção de análises que extrapolam as atribuições atuais do órgão. A instituição hoje é responsável por 162 pesquisas, das quais 65 são permanentes.
Para sair do papel, o projeto precisa superar restrições orçamentárias e de funcionários, além de uma crise institucional.
O IBGE é reconhecido como um dos mais importantes órgãos de estatística do mundo. Seus trabalhos indicam como vive a população, mostram características do território e medem o desempenho da economia, servindo de balizadores de políticas públicas. Nos últimos anos, funcionários encontram dificuldade para a realização de todas essas atividades.
Um extremo da crise foi o corte de recursos que quase inviabilizou o Censo Demográfico, no governo Jair Bolsonaro (PL). A coleta das informações, prevista para 2020, só aconteceu em 2022, com determinação do STF e complemento de verbas de emendas.
O orçamento do IBGE é vinculado ao Ministério do Planejamento, que liberou R$ 380 milhões para que o Censo fosse finalizado, já na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Até hoje, os microdados da pesquisa não foram divulgados.
Indicado por Lula, o economista Marcio Pochmann chegou à presidência do IBGE em agosto de 2023. Com trajetória ligada ao PT, foi o quinto nome a assumir o cargo de maneira definitiva desde 2016.
Pochmann acumula uma relação conturbada com os servidores, por episódios ligados a exonerações, mudanças de prédios, proposta de novo estatuto e projeto de criação de uma fundação com financiamento privado.
Em conferência nacional realizada em Salvador (BA) no início deste mês, o economista apresentou o chamado Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas (PGIEG), que retoma uma ideia de plano quinquenal dos anos 1970, mas agora com a previsão do uso de novas tecnologias.
O plano é visto como passo para a principal bandeira de sua gestão, a criação do Singed (Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados). Sob comando do IBGE, a ideia é que o sistema integre registros administrativos (como cadastros, notas fiscais e prontuários) de outros órgãos públicos e ministérios para reduzir custos de coleta e ampliar alcance de pesquisas, o que permitiria fazer inclusive análises preditivas.
O ponto-chave para a criação é a ampliação de um acordo já firmado com o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados), que defende uma "soberania nacional" por meio da migração de dados do IBGE e de outros órgãos para uma nuvem desenvolvida com software livre que, segundo os responsáveis, não depende de big techs estrangeiras.
"O Serpro atua como um guardião de dados. A gente oferta a tecnologia e a infraestrutura para garantir soberania, mas os órgãos que são os detentores dos dados. Ao longo dos anos, o IBGE virou uma instituição analógica. Há muita resistência corporativa. Mas o que dá credibilidade para o processo de integração? Tratar isso pelas empresas públicas", diz André Agatte, diretor de negócios do Serpro.
Estudo apresentado na conferência pela Diretoria de Pesquisas do IBGE indica oportunidades de melhora com a integração de sistemas, mas também preocupação com a dependência de tecnologia externa, que poderia prejudicar a autonomia institucional. Hoje o IBGE é responsável por gerir seus bancos de dados.
Para técnicos ouvidos pela reportagem, o plano quinquenal ajuda a evidenciar a importância dos trabalhos realizados, mas é necessário também pressionar pela aprovação de uma PEC de 2021 que propõe o reconhecimento do IBGE como instituição de Estado, a fim de ter mais autonomia financeira.
A avaliação é de que os recursos, liberados em maior volume apenas em anos de coleta do Censo, são insuficientes para garantir o funcionamento das atividades permanentes de modo satisfatório.
As atribuições também preocupam o sindicato da categoria. "Já fomos atravessados pelo processo tecnológico antes. A gente tem que acompanhar, mas nossa atribuição é estatística e geografia. Para virar estatística oficial tem que ter respaldo. A gente não vai perder confiança. Em última instância, ele [Pochmann] passa e o servidor fica", diz Clician Oliveira, diretora do Assibge.
Para a economista Wasmália Bivar, primeira mulher a presidir o IBGE, de setembro de 2011 a julho de 2016, o instituto está fragilizado pela escassez orçamentária e pela perda de servidores efetivos. São eles que dominam os processos internos, aponta Wasmália, que trabalhou no órgão por 33 anos.
Quase 63% dos 11,3 mil funcionários têm contratos temporários, de acordo com painel de servidores do governo federal. O quadro permanente, segundo cálculo do instituto, tem 22% de servidores aposentáveis.
A ex-presidente critica a atual gestão, que, segundo ela, acentuou uma postura "de costas" para o corpo técnico. Wasmália questiona, por exemplo, o fato de o IBGE ter realizado sua conferência em Salvador, longe do Rio, onde está o centro das operações do instituto.
"São ideias lançadas genericamente, normalmente sem apresentar detalhes, e se sai dali dizendo que é uma gestão democrática. Pode ser enorme a minha plateia, mas, se chego, apresento uma ideia e vou embora, isso não é discutir com o corpo técnico", afirma.
A ideia de integrar registros administrativos, premissa do Singed, é "bastante interessante", segundo ela, mas não é simples de ser desenvolvida.
A gestão Pochmann afirmou em diferentes momentos que debateu ações de forma democrática, enquanto servidores rebatem as declarações. Eles acusaram a direção de autoritarismo no ano passado. À Folha de S.Paulo o presidente defendeu que a descentralização dos eventos é uma forma de ampliar o diálogo.
"Há uma tentativa de construção de consenso progressivo. É um diálogo na casa, mas não dá para fazer uma assembleia com 11 mil pessoas distribuídas em 560 agências", disse.
O economista afirma que a modernização de processos pode ajudar a superar a defasagem de funcionários. "A instituição está em outro processo de reestruturação. O uso da inteligência artificial, por exemplo, reduz a necessidade de fazer coisas em que anteriormente se precisava de mais gente."
O pesquisador Roberto Olinto, que presidiu o IBGE de junho de 2017 a fevereiro de 2019, vê uma "ruptura fortíssima" entre o corpo técnico e a direção do órgão nos últimos anos. Para ele, há uma indefinição nos rumos do instituto. "Você não tem nada que oriente claramente o que vai ser feito", diz Olinto, que ingressou no órgão em 1980 e ficou até 2019.
Na visão do pesquisador, o Singed tem um "erro básico" que é propor uma centralização de informações de forma "pouco clara". "O Banco Central, que é um produtor de dados, está numa hierarquia equivalente ao IBGE. Ele não vai levantar dado e entregar para o IBGE."
Olinto defende a criação de uma "autoridade estatística" ou de um "conselho nacional" que coloque os diversos produtores de informações em espaço institucional aberto ao debate: "Essa coisa não é centralizada no IBGE. É um conselho, que vai unir IBGE, Banco Central, Secretaria de Comércio Exterior, Secretaria do Tesouro."