SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um conjunto com dezenas de milhares de fósseis escavados na ilha de Spitsbergen, no arquipélago de Svalbard (Noruega), a cerca de mil quilômetros do Ártico, revelou uma diversidade surpreendente de vertebrados marinhos, incluindo vários tipos de peixes, anfíbios e répteis aquáticos em um período de recuperação da vida marinha logo após a extinção em massa do final do Permiano (252 milhões de anos atrás).
O aglomerado de fósseis ?denominado leito fossilífero ("fossilbed", em inglês) de Grippia? com mais de 30 mil peças continha fragmentos de escamas, ossos, dentes, vértebras, coprólitos (cocô fossilizado) e demais restos que foram estudados ao longo de dez anos por uma equipe de cientistas do Museu de História Natural da Universidade de Oslo (Noruega) e do Museu Sueco de História Natural em Estocolmo (Suécia). Os achados foram divulgados no mês passado na revista Science.
A paleontóloga Aubrey Roberts, pós-doutoranda na Universidade de Oslo e primeira autora do estudo, explica que a maior campanha para escavar os ossos ocorreu em agosto de 2016 com uma equipe composta de pesquisadores, estudantes de pós-graduação e voluntários. "Quase uma década depois, em 2024, sentimos que tínhamos uma boa visão geral do ecossistema encontrado naquela localidade após anos de separação e análise do material."
Um leito fossilífero pode ser definido como um "aglomerado de ossos em uma camada rochosa" onde podem estar misturados os ossos de diferentes grupos animais. "Ainda há muito trabalho a fazer, pois mal tocamos nos microfósseis presentes no depósito, e ainda há muito material que não conseguimos identificar com certeza", afirma a cientista.
A principal descoberta, porém, foi a de uma riqueza de fauna do oceano onde hoje é o Ártico (à época, era um único oceano global chamado Pantalassa), incluindo espécies de vertebrados predadoras, como répteis aquáticos, tubarões, e demais animais marinhos.
Entre os espécimes encontrados se destacam os peixes cartilaginosos (tubarões), peixes pulmonados (dipnoicos), peixes ósseos (actinopterígeos, semelhantes ao atual badejo), peixes de nadadeira lobada (sarcopterígeos), celacantos, anfíbios primitivos (temnospôndilos), arcossauromorfos (ancestrais dos crocodilos) e répteis ictiossauros e ictiopterígeos (répteis aquáticos com corpo em formato semelhante ao dos golfinhos atuais).
Durante a era Paleozóica, que teve início com o período do Cambriano (550 milhões de anos), houve uma explosão da vida marinha na Terra, com invertebrados e peixes dominando este ecossistema até o final do Permiano, quando um grande evento de extinção em massa dizimou mais de 90% de todas as formas de vida conhecida. Logo após o Permiano, no início da era Mesozóica, teve início a chamada Era dos Dinossauros ou Era dos Répteis (dividida nos períodos Triássico, de 252 a 201 milhões de anos, Jurássico, de 201 a 145 milhões de anos, e Cretáceo, de 145 a 66 milhões de anos atrás).
Mas, além dos dinossauros, muitas outras linhagens de répteis surgiram e se diversificaram já a partir do Triássico, incluindo formas aquáticas, como os plesiossauros, os mesossauros, os talatossauros e os ictiossauros ?que tiveram sua origem no início do Triássico e foram extintos há cerca de 90 milhões de anos.
Segundo os autores, a grande surpresa foi encontrar uma variedade de formas já derivadas (com características próximas às linhagens cuja diversificação ocorreu alguns milhões de anos depois) de ictiossauros, uma vez que a ideia corrente até então era que essas formas mais complexas demoraram pelo menos oito milhões de anos após a extinção do final do Permiano para se diversificar. A localidade de Grippia tem idade estimada em 249 milhões de anos, apenas 3 milhões de anos após o fim do Permiano.
"Não esperávamos encontrar uma diversidade tão rica de ictiossauros, ictiopterígeos e outros répteis proximamente relacionados. Os ictiossauros estiveram presentes nos mares por cerca de 150 milhões de anos, enquanto os dinossauros vagavam pela terra, e se pensava que eles tinham evoluído e se diversificado após a extinção do final do Permiano. Nossa pesquisa questiona isso, com a presença de clados derivados já no início do Triássico", diz Roberts.
O novo estudo "puxa para baixo" a idade aproximada para evolução dessas formas. "Apenas para um único grupo de répteis marinhos, temos evidências de pelo menos cinco espécies diferentes, algumas delas bem derivadas, demonstrando evolução logo antes ou imediatamente após a extinção em massa", afirma.
Outro achado interessante da pesquisa foi observar as diferentes relações ecológicas entre os vertebrados ali presentes. Enquanto tubarões se alimentavam de peixes menores, estes eram devorados por ictiossauros que ocupavam o topo da cadeia alimentar oceânica à época.
Até o momento, localidades com leitos fósseis de idade similar continham uma diversidade grande de peixes e anfíbios, mas não de répteis marinhos. Os autores afirmam, assim, que é provável que a evolução destas linhagens não ocorreu na forma de uma "escada de complexidade", proposta por diversos cientistas, mas a partir de "diversas linhagens oportunistas que se diversificaram e sobreviveram do final do Paleozoico ao início do Mesozoico".
Os autores concluem que a descoberta dos fósseis sugere que a origem e evolução dos tetrápodes marinhos, em especial répteis, ocorreram antes do esperado e, provavelmente, em paralelo à recomposição da fauna marinha de invertebrados no primeiro milhão de anos logo após a extinção no final do Permiano.