BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O marco temporal para demarcação de terras indígenas voltou aos holofotes nas últimas semanas, com movimentações diferentes no Congresso Nacional e no STF (Supremo Tribunal Federal), mas em ambos os casos sob críticas dos povos originários.
A discussão, em todos os âmbitos, é mais ampla que o marco em si e impacta também os procedimentos de demarcação em geral e as possibilidades de exploração dos territórios.
O marco temporal é a tese segundo a qual os territórios indígenas devem ser reconhecidos de acordo com o momento da promulgação da Constituição Federal, em 1988.
Atualmente há em tramitação um processo no STF e uma PEC (proposta de emenda à Constituição) no Congresso.
Na última segunda-feira (15), o ministro do Supremo Gilmar Mendes votou para derrubar a tese do marco temporal, mas decidiu em favor, por exemplo, da exploração dos recursos naturais por não indígenas (por cooperação), da indenização a fazendeiros para a demarcação e também da possibilidade de que os povos sejam alocados em áreas diferentes das que ocupavam originalmente.
A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), principal entidade representativa desse grupo no país, afirma que esses e outros pontos da decisão ameaçam "a própria vida e sobrevivência cultural de cerca de 1,7 milhão de indígenas, pertencentes a 391 povos".
Já o Senado aprovou, no último dia 9, uma PEC sobre o tema. Sua principal diferença com relação ao voto de Gilmar é que a proposta institui o marco temporal no texto da Constituição.
Em consonância com o Supremo, o texto também prevê a indenização a fazendeiros e a alocação de povos em áreas diferentes das que ocupavam originalmente ?além de vedar a ampliação de territórios e prever a participação de proprietários rurais durante todo o processo de demarcação.
Segundo a Apib, a proposta "promove uma reestruturação profunda do regime constitucional das terras indígenas, institucionalizando a negação de direitos indígenas".
O QUE A DISCUSSÃO ENVOLVE
O debate sobre o marco remete à interpretação do artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens", diz o texto.
Os críticos da tese defendem que o direito dos povos ao território é anterior ao texto constitucional, portanto sua demarcação deve respeitar estudos antropológicos que determinem a área que cada grupo habita originalmente.
Seus defensores afirmam que ela dá segurança jurídica a partir da previsão de um marco temporal para a delimitação das terras.
QUEM DEFENDE
O agronegócio é o principal setor a favor da tese, que é impulsionada no Legislativo pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), fiadora da bancada ruralista e maior grupo do Congresso.
A FPA defende que a PEC serve "para proteger os direitos históricos das comunidades indígenas, ao mesmo tempo em que garante a estabilidade das relações sociais, econômicas e territoriais no país".
Já sobre o voto de Gilmar, a frente afirma ver com preocupação a derrubada do marco, mas celebrou que outros pontos da decisão garantem "mais transparência e segurança aos processos de demarcação".
HISTÓRICO
O emaranhado de textos sobre o marco envolve, no total, três julgamentos no Supremo e duas propostas no Congresso.
2009 - Caso Raposa Serra do Sol
O primeiro julgamento ocorreu na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, finalizado em 2009 sob relatoria do ministro Ayres Britto. Na ocasião, o STF criou 19 condicionantes para exploração do território e instituiu pela primeira vez a tese do marco temporal.
2023
- STF derruba marco temporal com repercussão geral
O Supremo voltou a analisar a questão do marco temporal no julgamento sobre a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, em Santa Catarina, do povo xokleng, retomando a discussão sobre o tema.
Em 2023, o plenário do STF votou para derrubar a tese do marco temporal, com o diferencial que o caso se enquadrava no que se chama de "repercussão geral", fazendo com que essa decisão passasse a valer para todos os casos correlatos, sobrepondo-se ao julgamento de Raposa Serra do Sol.
Na ocasião, o Supremo também referendou a indenização pela demarcação de terras indígenas.
- Congresso reage, apresenta PEC e aprova projeto
À época, STF e Congresso viviam momentos de tensão, e o Senado reagiu: apresentou a PEC do marco temporal e terminou de aprovar um projeto de lei que instituia a tese na legislação.
A proposta votada no Congresso tinha como base justamente as condicionantes do caso de Raposa Serra do Sol, previa a indenização a fazendeiros pela demarcação e permitia a exploração dos territórios, inclusive por não indígenas.
- Lula barra PL, mas Legislativo derruba veto
O presidente Lula (PT) vetou o projeto, mas o Legislativo derrubou a medida e fez valer este texto enquanto lei, o que deu início a um novo capítulo da disputa.
Assim que a nova legislação passou a vigorar, o Supremo foi acionado tanto por defensores, que pediam sua validação, quanto por críticos, que alegam que a tese vai contra o que determina a Constituição.
É esse processo que está em tramitação no STF hoje, sob relatoria de Gilmar Mendes.
COMO ESTÁ O JULGAMENTO NO STF
Defensor dos interesses ruralistas, Gilmar abriu uma mesa de conciliação sobre o tema e chegou a propor uma resolução para regulamentação da mineração em terras indígenas ?mas depois recuou.
Em seu voto, o ministro derrubou a tese do marco, mas validou a indenização a fazendeiros e permitiu que os povos sejam alocados em lugares diferentes dos habitados originalmente ?política que foi aplicada pela ditadura e é criticada pelo movimento indígena.
Ele também abriu espaço para que antropólogos envolvidos no processo de demarcação sejam sujeitos a suspeição em caso de morosidade e autorizou contratos de cooperação com não indígenas para exploração de recursos naturais.
Além de Gilmar, votou também o ministro Flávio Dino, que divergiu do decano sobre a suspeição dos servidores, a realocação dos indígenas e a cooperação.
Cristiano Zanin e Luiz Fux também já votaram, somando 4 votos a 0 para derrubar a tese.
COMO ESTÁ A TRAMITAÇÃO NO SENADO
A PEC do marco temporal foi apresentada em 2023, mas estava parada desde meados de 2024.
Quando o STF voltou a se movimentar sobre o tema, no início de dezembro, o Senado respondeu e aprovou a proposta em plenário, em uma votação acelerada.
O objetivo da PEC é contrapor o argumento de que o marco viola a Constituição ?base para as decisões que derrubaram a tese até agora.
Uma vez aprovada, a proposta incluiria o marco temporal na Carta Magna, forçando assim o Supremo a respeitá-lo em suas decisões.
O texto ainda precisa ser votado pela Câmara dos Deputados, o que não acontecerá em 2025.