BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O STF (Supremo Tribunal Federal) formou nesta quarta-feira (17) maioria de 6 votos a 0 para invalidar trecho da lei que instituía um marco temporal para a demarcação das terras indígenas e para estabelecer um prazo para a União concluir todos os processos pendentes no país.
O marco temporal é a tese segundo a qual os territórios indígenas devem ser reconhecidos de acordo com a ocupação deles no ano de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada.
O caso foi e voltou entre os plenários do tribunal nos últimos dias e, a não ser que nenhum ministro peça destaque -quando o processo é levado para o debate presencial- ou vista (o que paralisa a votação) deve ser concluído até sexta (19).
A maior parte dos ministros também validou regras para o uso desses territórios, como o exercício de atividades econômicas, "inclusive turismo, desde que os benefícios alcancem toda a coletividade e que a posse da terra seja preservada".
Em seu voto, Gilmar apontou a omissão da União quanto ao cumprimento da previsão de conclusão dos processos de demarcação até 1993.
Nesse ponto, os votos dados até o momento determinam que a Funai (Fundação nacional dos Povos Indígenas) apresente uma lista de antiguidade das reivindicações e que, a partir de então, seja observado o prazo de dez anos para a finalização dos procedimentos.
"Nossa sociedade não pode conviver com chagas abertas séculos atrás que ainda dependem de solução nos dias de hoje, demandando espírito público, republicano e humano de todos os cidadãos brasileiros (indígenas e não indígenas) e principalmente de todos os Poderes para compreender que precisamos escolher outras salvaguardas mínimas para conduzir o debate sobre o conflito no campo, sem que haja a necessidade de fixação de marco temporal", diz o relator em seu voto.
Entenda a discussão a seguir, em dez pontos.
O que é o marco temporal?
O marco temporal é uma tese que estabelece que os territórios indígenas devem ser reconhecidos de acordo com o momento da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Segundo essa interpretação, apenas as terras que eram ocupadas ou disputadas pelos povos indígenas nessa data específica poderiam ser demarcadas como territórios indígenas.
O que diz a Constituição sobre terras indígenas e quais são as interpretações?
O artigo 231 reconhece aos indígenas "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". A disputa está justamente na interpretação desse trecho: o que significa "tradicionalmente ocupam". Os críticos do marco temporal defendem que o direito dos povos ao território é anterior à Constituição e que a demarcação deve respeitar estudos antropológicos sobre a ocupação original. Já os defensores da tese afirmam que ela dá segurança jurídica ao estabelecer um marco temporal claro --a promulgação da Constituição.
Quem defende o marco temporal e por quê?
O agronegócio é o principal setor favorável à tese, representado no Legislativo pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), fiadora da bancada ruralista e maior grupo do Congresso. A FPA defende que o marco "garante a estabilidade das relações sociais, econômicas e territoriais no país".
Citação Vai consolidar o que existe hoje. Aquilo que está demarcado, está demarcado, acabou. Os índios já não estão nessa área. O que queremos é segurança para o que vem pela frente João Hummel, fundador do Instituto Pensar Agro em entrevista à
2 argumentos a favor do marco temporal
Segurança jurídica e data clara: Estabelece a promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988) como marco definido para ocupação de terras indígenas, o que resolveria disputas territoriais e daria segurança jurídica e econômica para investimentos no campo. Proteção contra reivindicações ilimitadas: Evitaria que todo o território brasileiro, incluindo grandes centros urbanos, possa ser reivindicado como terra indígena (a chamada "tese de Copacabana"), o que geraria insegurança sobre a propriedade de imóveis. Hipótese foi refutada no STF.
Quem é contrário ao marco temporal e por quê?
O movimento indigenista e ambientalistas defendem que os direitos territoriais dos povos indígenas são anteriores à existência do Estado brasileiro e não podem ser condicionados a uma data. Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a proposta "promove uma reestruturação profunda do regime constitucional das terras indígenas, institucionalizando a negação" de seus direitos.
2 argumentos contra o marco temporal
Penaliza vítimas de violência: Dificulta o acesso ao direito à terra ao exigir comprovação de permanência de povos que foram deslocados ou reduzidos por assassinatos e doenças, punindo as vítimas de violência histórica. Incentivo à grilagem e desmatamento: Estimula a grilagem como forma de fraudar a comprovação de ocupação de terras no período estabelecido, agravando o desmatamento na Amazônia e prejudicando o setor produtivo brasileiro frente a regulações ambientais.
Por que o marco temporal voltou ao debate?
O tema ganhou destaque recentemente devido a movimentações paralelas no Congresso Nacional e no STF (Supremo Tribunal Federal). No Senado, no último dia 9, foi aprovada uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que institui o marco temporal no texto constitucional. Paralelamente, o Supremo retomou nesta semana, de forma virtual, o julgamento de um processo sobre o tema.
O STF já não havia decidido sobre o tema?
Sim. Em 2023, o Supremo derrubou a tese do marco temporal por 9 votos a 2. Porém, em reação, o Congresso votou e aprovou o projeto de lei 490, que estabeleceu o marco. O texto aprovado no Legislativo foi questionado no STF, que voltou a debater o assunto.
O que a maioria do STF decidiu, até o momento?
Os ministros que se manifestaram por ora seguiram o voto do relator, Gilmar Mendes, contra o marco. Gilmar afirma que a lei aprovada pelo Congresso é desproporcional e não traz segurança jurídica ao impor o marco temporal de forma retroativa, além de atingir comunidades que não têm documentação formal de ocupação.
Embora tenha votado contra o marco, Gilmar validou pontos polêmicos: indenização a fazendeiros pela demarcação, possibilidade de realocar povos indígenas em áreas diferentes das originalmente ocupadas, e autorização para contratos de cooperação com não indígenas para exploração de recursos naturais.
Qual a diferença entre a discussão no STF e a PEC do Senado?
A principal diferença é que a PEC pretende incluir o marco temporal diretamente na Constituição. Em consonância com o Supremo, por outro lado, o texto também prevê a indenização a fazendeiros e a alocação de povos em áreas diferentes das que ocupavam originalmente -além de vedar a ampliação de territórios e prever a participação de proprietários rurais durante todo o processo de demarcação.
Como está a tramitação da PEC?
A PEC aprovada pelo Senado ainda precisa ser votada pela Câmara dos Deputados, o que não acontecerá em 2025.
O que pode acontecer se o marco for...
Aprovado? Tese poderá continuar sendo usada em questionamentos de demarcação na Justiça. Em 2023, análise da Folha com dados da Funai mostrou que a instituição de um marco temporal pode inviabilizar a posse de indígenas em 275 terras no país ocupadas por eles -36% dos 765 territórios na base de dados da fundação.
Derrubado? Uso da tese como argumento será dificultado, o que pode beneficiar indígenas nos processos de demarcação.