PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - Nos vastos campos no sul do Brasil, paisagem que costuma ser representada por trabalhadores rurais, empunhando chimarrão, na companhia de gado e cavalos, e uma linha do horizonte infinita, há um bichinho que não faz parte desse imaginário coletivo, mas que serve como um importante indicador da situação atual de degradação e ameaças ao pampa, o bioma menos protegido proporcionalmente no país.
A espécie em questão é um felino. Diferente de outros que habitam a região, porém, não sobe em árvores diante de riscos e depende exclusivamente dos campos para proteção, caçar alimentos e seguir seu ciclo de vida. O gato-palheiro pampeano, com o pelo entre amarelo e cinza e listras pretas nas patas, costuma pesar 3,8 quilos e é uma das espécies mais ameaçadas de extinção no Brasil.
"Ele está tão ameaçado quanto o pampa ou mais, porque justamente é um felino especialista em campos nativos. Só ocorre ali. Estão transformando o campo nativo em soja e a gente está vendo cada vez menos essa população", diz a bióloga Marina Ochoa Favarini.
Ela é uma das idealizadoras do Felinos do Pampa, projeto vinculado a duas universidades federais ? UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e UFPEL (Universidade Federal de Pelotas)? e ao Instituto Pró-Carnívoros.
A iniciativa busca entender a biodiversidade de felinos na região Sul e como eles estão sobrevivendo em meio à degradação do bioma presente em 69% do território gaúcho, único estado brasileiro onde ocorre, além de parte da Argentina e do Uruguai. O Dia do Pampa é celebrado nesta quarta-feira, 17 de dezembro.
Apesar da experiência de cerca de 20 anos dos integrantes com pesquisas envolvendo felinos, o trabalho reunido sob a bandeira do projeto só começou em 2021, impulsionado por uma demanda do Geoffroy's Cat Working Group, organização internacional voltada a felinos silvestres da América do Sul.
A espécie que batiza a iniciativa é conhecida no Brasil como gato-do-mato-grande, cuja pelagem lembra uma chita em versão pouco maior que um gato doméstico.
"A gente chama felinos de hipercarnívoros, ou seja, eles só se alimentam de carne. Não comem frutos ou outras coisas que complementariam a dieta. E, por serem hipercarnívoros, eles controlam a população das presas e o equilíbrio de um ambiente", explica a bióloga Flávia Pereira Tirelli, outra idealizadora do projeto.
"Eles são guarda-chuvas, porque se a gente proteger essas espécies, predadores topo de cadeia, mais sensíveis à alteração do ambiente, vamos estar protegendo também as presas, as presas das presas, a cadeia como um todo", explica Felipe Bortolotto Peters, também idealizador do grupo.
O pampa registra 7 de 10 espécies de felinos encontradas no Brasil, segundo os pesquisadores: gato-do-mato-grande, gato-maracajá, gato-mourisco, gato-palheiro pampeano, gato-do-mato-pequeno, jaguatirica e puma ?esses três últimos mais ocasionais, encontrados junto a área de contato com a mata atlântica.
Até pouco tempo, informações sobre essas populações eram escassas. A população do gato-palheiro, por exemplo, não tinha cifra exata, mas uma estimativa de pesquisadores a partir de 2020 chegou a 243 indivíduos maduros (capazes de se reproduzir) e 809 na população total existente no Brasil. Nos países vizinhos, esse dado não é conhecido.
O cenário, porém, tem mudado nos últimos anos graças ao acesso maior à tecnologia.
Para coletar dados, o projeto gaúcho conta com armadilhas fotográficas e coleiras de rastreamento. Se antes os sensores das câmeras eram muito sensíveis, podendo ser disparados com uma mudança de vento, agora há mais precisão. Como comparação, Peters conta que, enquanto nos últimos quatro anos eles chegaram a cerca de 50 registros de gato-palheiro, nos quatro anos anteriores, o total havia sido de 3 casos.
O salto, porém, não indica crescimento da população de animais, cujo avistamento é cada vez mais raro em campo. "Conforme a área de lavouras aumenta, o registro do gato-palheiro entra em declínio. É o bicho mais raro, não tem mais ambiente para ele", explica o biólogo.
A perda de habitat lidera a lista de ameaças, impulsionada pelo avanço de monoculturas de soja e eucalipto. Os animais têm sido obrigados a buscar caça mais perto de territórios humanos, como fazendas, ficando vulneráveis a ataques de cachorros, doenças transmitidas por animais domésticos ou alimentos contaminados, além do risco de atropelamento em estradas.
O pampa é o segundo bioma com menor percentual de cobertura de vegetação nativa, segundo dados do MapBiomas, atrás apenas da mata atlântica. Proporcionalmente ao território, no entanto, o pampa foi o bioma que mais perdeu vegetação nativa nos últimos 40 anos, uma queda de 30%.
Hoje 45,6% do pampa são ocupados por algum tipo de atividade humana, como agrícola ou silvicultura, crescimento de 76% nos últimos 40 anos. Só a área plantada de soja teve um aumento de 385% de 1985 a 2024.?
"Devido a essa formação aberta, bioma de campo, isso [a devastação] acaba não repercutindo nem gerando comoção social. Se fosse avaliar matematicamente o que acontece no pampa, é maior do que as piores crises na amazônia", diz Rogério Chimanski da Fontoura, engenheiro agrônomo e servidor público e coordenador do Salve o Pampa, movimento pela conservação do bioma e da cultura gaúcha.
As imagens flagradas pelo Felinos do Pampa, em vídeos e fotos, são compartilhadas com cerca de 28 mil seguidores na página do projeto no Instagram, o que tem ajudado na conscientização sobre a biodiversidade, avaliam os pesquisadores.
Os cientistas do grupo também apostam em educação ambiental de comunidades com a chamada ciência cidadã. A ideia é instruir a população sobre as espécies, como conviver com elas e como observar atropelamentos, ajudando a reunir dados que apontem locais de maior risco aos animais.
"Esse era o nosso objetivo: saber o que está passando aqui [no pampa gaúcho] e, ao mesmo tempo, mostrar para as pessoas e também ouvi-las", diz Favarini.
RAIO-X DO PAMPA??
- Extensão: 193.836 km² (IBGE/2019), o que equivale a 69% do território gaúcho e a 2,3% do território nacional
- Localização: Apenas no RS no Brasil, além de parte do Uruguai e da Argentina; abrange 233 municípios gaúchos
- Espécies: mais de 12,5 mil (somando plantas, animais, fungos e microrganismos)
- Unidades de conservação: 3% do território sob proteção, bioma menos protegido por UCs no Brasil
- Área ocupada por atividade humana: 45,6%
Fontes: IBGE, governos estadual e federal