SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) - A Prefeitura de São Paulo instalou câmeras do Smart Sampa, um programa de reconhecimento facial, dentro de unidades de saúde mental, como os Caps (Centros de Atenção Psicossocial).

A medida é questionada pelo Comuda (Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool), que cita violação da privacidade de pacientes e denuncia abordagens a um paciente e uma funcionária, além de erros de identificação. A Prefeitura de São Paulo diz que a instalação de câmeras não interfere na rotina de atendimentos ou no acesso aos serviços (leia mais abaixo).

O conselho cobrou explicações da gestão Ricardo Nunes (MDB) sobre as câmeras. O Comuda, formado por membros indicados pelo poder público e entidades da sociedade civil, enviou ofício à Secretaria Municipal da Saúde em 2 de dezembro, pedindo informações sobre a instalação de câmeras de reconhecimento facial na Rede de Atenção Psicossocial da cidade.

Smart Sampa é um programa criado em 2024 pela prefeitura. O sistema usa inteligência artificial em imagens de câmeras espalhadas pela cidade para identificar foragidos da Justiça.

O Comuda recebeu ao menos seis queixas de abordagens dentro de Caps, motivadas pelas câmeras. Segundo Michel Marques, integrante do conselho, os relatos envolvem abordagens de agentes da GCM (Guarda Civil Metropolitana) a pacientes e funcionários de unidades de saúde mental.

As câmeras foram instaladas dentro das unidades. A reportagem do UOL visitou um Caps e viu equipamentos na recepção e na entrada de áreas de convivência ?onde ocorrem atividades de recreação e socialização.

Os equipamentos estão em diferentes tipos de Caps. Segundo o conselho, as câmeras estão sendo instaladas em Caps voltados ao atendimento de dependentes de álcool e atendimentos infantojuvenil e adulto. O órgão cobra da prefeitura a lista das unidades já atendidas e das que ainda receberão os equipamentos.

O tema é tratado como sensível pelo conselho. O grupo afirma que os serviços seguem diretrizes federais baseadas no cuidado em liberdade, incluindo a proteção das pessoas atendidas.

O documento questiona quem autorizou a instalação. No ofício enviado à prefeitura, o Comuda também pergunta qual setor determinou a implantação das câmeras e solicita a presença de um representante da Coordenação de Saúde Mental em reunião marcada para 6 de janeiro de 2026.

A Secretaria de Saúde disse ao Comuda que parte das questões foge à sua competência. Em resposta ao conselho, a pasta indicou uma representante para a reunião, mas afirmou que aspectos técnicos do Smart Sampa, como uso e armazenamento de imagens, são de responsabilidade da área de tecnologia da prefeitura.

GCM ALGEMOU PACIENTE DURANTE ATENDIMENTO, DIZ CONSELHEIRO

O conselheiro relata ação da GCM no Caps. Em um dos casos, ocorrido em novembro, dois agentes da GCM entraram armados numa unidade e abordaram um homem que estava em atendimento, conta Marques.

O paciente foi algemado diante de usuários e profissionais. Ele foi levado à delegacia e liberado em seguida. Conforme o conselheiro, o homem foi confundido pelo sistema de reconhecimento facial. Ele já havia sido preso antes, mas cumpriu toda a pena.

O conselheiro também cita a abordagem a uma funcionária em outro Caps. Segundo ele, a mulher foi abordada por engano pela GCM, na zona norte da capital, e conseguiu comprovar no local que não era a pessoa procurada.

MEDIDA IMPACTA SAÚDE DAS PESSOAS

Psiquiatra vê riscos para a saúde e o acesso de pacientes. Para o médico Leonardo Ramos, com experiência em atendimento em Caps álcool e outras drogas, a presença de câmeras do Smart Sampa pode limitar a procura por atendimento e diminuir a adesão das pessoas.

Ele destaca dificuldades específicas nos Caps álcool e outras drogas. "A questão policial não deve entrar no espaço de saúde", diz Ramos. "O serviço quer que o usuário acesse o atendimento da forma que for possível, inclusive intoxicado."

Para o psiquiatra, a presença de câmeras pode enfraquecer vínculos. "A uma pessoa que tem uma questão com a lei, vai ser negado o atendimento ou vai ser feito o atendimento com escolta policial?" questiona o médico. "Isso vai enfraquecer vínculos entre o usuário e os profissionais. E um dos objetivos principais no Caps é fortalecer os vínculos."

CÂMERAS NÃO PODEM ESTAR EM ÁREAS DE ATENDIMENTO

Professor de direito vê possível violação à intimidade. Para Mauricio Dieter, da Faculdade de Direito da USP, a instalação de câmeras em unidades terapêuticas pode violar a intimidade de pessoas em tratamento de saúde mental.

Câmeras não podem estar em áreas de atendimento psicossocial. Segundo ele, o monitoramento pode ser aceitável em salas de espera, desde que respeitadas as regras de proteção de dados. "Mas o monitoramento de áreas onde há atendimento psicossocial sendo oferecido diretamente a cidadãos não é admissível, violando também o sigilo inerente à relação entre terapeuta e paciente."

Risco é maior no atendimento a crianças e adolescentes. Dieter afirma que gravar imagens ou áudio sem autorização do responsável legal fere a proteção garantida a crianças e adolescentes. "Desrespeita as condições para seu pleno desenvolvimento moral, que devem ser sempre priorizadas", explica.

O QUE DIZ A PREFEITURA

A Prefeitura de São Paulo diz que a instalação de câmeras nas unidades teve aprovação da Secretaria de Saúde. "A instalação de câmeras do Smart Sampa em unidades de saúde foi realizada com total anuência e acompanhamento da área técnica da Secretaria Municipal de Saúde, o que garante que o uso da tecnologia não interfira na rotina de atendimentos ou no acesso aos serviços", afirma.

A prefeitura lembra que diversos equipamentos municipais têm câmeras. A gestão municipal cita parques, escolas e centros esportivos. Segundo a gestão municipal, as câmeras do programa têm "finalidade exclusiva de segurança pública e operam em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados e índice de assertividade de 99,5%".

A administração municipal explica, ainda, o acionamento de agentes da GCM. Segundo a gestão municipal, o acionamento de equipes em campo somente ocorre após os alertas de reconhecimento facial passarem por validação humana obrigatória. Também é feita a confirmação de mandado judicial ativo contra a pessoa identificada junto ao Banco Nacional de Monitoramento do Conselho Nacional de Justiça, explica a prefeitura.

"Além disso, o programa obteve mais de 89% de aprovação da população em duas pesquisas (IPESPE e Real Time Big Data) neste ano. Em junho o Município divulgou o primeiro Relatório de Transparência do Smart Sampa e todos os dados podem ser consultados. A Prefeitura ressalta que a recusa do UOL em compartilhar dados sobre os casos mencionados pela reportagem impediram a apuração da veracidade das informações pela administração municipal", disse a Prefeitura de São Paulo, em nota.