SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - O DNA das baleias-jubartes (Megaptera novaeangliae) ainda traz as marcas da caça em escala industrial, responsável por levar esses mamíferos marinhos até o limiar da extinção no século 20. Os cetáceos perderam uma parcela considerável da sua diversidade genética, e variantes de DNA que provavelmente têm um efeito negativo moderado sobre os animais ficaram mais comuns na população muito reduzida de hoje.
As conclusões estão em estudo publicado na última quarta (17) no periódico especializado Science Advances. O primeiro autor do trabalho é o brasileiro Fabricio Furni, hoje pesquisador da Universidade de Groningen, na Holanda, e o artigo também é assinado pelo coorientador do doutorado de Furni, Eduardo Secchi, da Universidade Federal do Rio Grande (RS).
Secchi contou à Folha de S.Paulo que algumas das amostras de DNA de jubartes analisadas na pesquisa foram coletadas na Antártida durante projetos coordenados por ele no âmbito do Programa Antártico Brasileiro. De fato, o oceano Austral, que circunda o continente gelado, abrigava a maior população da espécie ?bem como de vários outros tipos de baleias? até o advento das modalidades industrializadas da caça no começo do século 20.
A procura pelas jubartes na Antártida ganhou força depois que a população da espécie no Atlântico Norte já tinha sofrido o impacto das capturas comerciais a partir do século 19. Os cetáceos foram explorados com tamanha intensidade que a Comissão Internacional da Baleia, órgão criado para regular a caça aos animais, acabou proibindo totalmente a captura da espécie em 1963. Mesmo assim, calcula-se que dezenas de milhares de jubartes ainda foram caçadas por navios baleeiros soviéticos de forma clandestina durante as duas décadas seguintes.
Além dos registros históricos sobre a caça, é possível usar a presença de variantes de cada região do DNA de uma espécie para estimar como uma população variou ao longo do tempo. Foi isso o que a equipe de pesquisadores fez ao comparar o genoma completo de 16 jubartes que viveram recentemente (dos anos 1980 em diante) ao de nove espécimes "históricos" (do começo do século 20).
"Existem modelos matemáticos que conseguem estimar o tamanho da população por meio do DNA. Se a gente compara DNA antigo de ossos com o de indivíduos atuais e nota uma redução nessa diversidade genética, podemos confirmar uma redução da população", conta Secchi.
Furni, por sua vez, explica que um dos mecanismos usados para chegar a conclusões sobre esse tipo de fenômeno envolve a ligação entre "blocos" de DNA. Algumas variantes genéticas ?por exemplo, trocas de uma única "letra" química de DNA, embora outras mudanças também sejam possíveis? tendem a estar juntas nesses blocos, sendo transmitidas também grudadas de geração em geração.
No entanto, durante a reprodução, os blocos podem se fragmentar e ser embaralhados, no processo conhecido como recombinação. E mudanças no tamanho de uma população ao longo do tempo podem interferir justamente nesse processo.
"Em populações grandes e estáveis, essa ligação entre as variantes costuma ser mais fraca, porque ocorrem mais eventos de reprodução ao longo do tempo, ou seja, mais mistura, o que aumenta as chances de essas variantes serem separadas umas das outras", explica Furni.
"Já em populações menores ou reduzidas, como no caso das baleias, acontece o oposto. Essa ligação entre as variantes tende aleatoriamente a ser mais forte do que o esperado, simplesmente porque há menos eventos de reprodução capazes de separar uma variante da outra", compara ele. É com base nessa dinâmica que se torna possível traduzir mudanças na ligação entre variantes em estimativas populacionais.
Os números estimados pelos pesquisadores são impressionantes. Por volta do ano de 1600, por exemplo, antes do início das atividades baleeiras em larga escala, a população das jubartes do Atlântico Norte estaria em torno dos 25 mil indivíduos, despencando para apenas 2.500 baleias em torno de 1900.
Já no oceano Austral, o número de animais estaria próximo dos 70 mil no século 17, mas teria caído para uma população ainda menor que a do Atlântico Norte ?só 1.400 baleias? em 1930.
Mesmo com a recuperação parcial das populações após o banimento da caça comercial, o número no oceano Austral de hoje seria ainda de apenas um terço da população pré-industrial da espécie.
MAIS HOMOGÊNEO
Além da queda populacional, o DNA da espécie nas águas em torno da Antártida também é consideravelmente mais homogêneo do que foi no passado. Uma medida disso é a análise da chamada heterozigosidade. Trata-se, trocando em miúdos, da presença de duas variantes diferentes da mesma região do DNA num mesmo indivíduo.
Ocorre que, na maioria das espécies que se reproduzem por meio do sexo, cada indivíduo recebe uma cópia de cada região do DNA do pai, e a outra, da mãe. Heterozigotos são os que recebem versões diferentes paternas e maternas, e isso frequentemente é vantajoso, porque uma variante genética problemática de um lado da família pode ser contrabalançada por outra, sem esse problema, vinda do outro lado.
No caso das jubartes, a fase de caça avassaladora à espécie parece ter diminuído a heterozigosidade a uma taxa entre 20% e 30% no oceano Austral.
Como a "leitura" do genoma deu aos pesquisadores acesso aos tipos de variantes que se tornaram mais comuns na população de jubartes, eles também conseguiram estimar o possível efeito delas. A notícia menos ruim, nesse caso, é que parecem ser variantes consideradas de impacto moderado, que podem alterar ligeiramente a função bioquímica cuja "receita" está no DNA, mas não de forma catastrófica ("desligando" um gene, por exemplo).
Assim, por ora, não parece que as jubartes estejam muito vulneráveis geneticamente. Por outro lado, a perda de variabilidade genética nunca é positiva, já que é a partir dela que uma espécie tem mais chances de se adaptar a mudanças no ambiente, novas doenças e parasitas etc. Por isso, a recuperação completa em relação aos impactos da caça predatória demorará muitas gerações para acontecer, na melhor das hipóteses.