SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Imagens em infravermelho revelaram a existência de uma tradição milenar de tatuagens nos antigos reinos da Núbia, no vale do rio Nilo (mais ou menos correspondente ao atual Sudão). A prática se estende desde a Antiguidade até a Idade Média e pode ter até se intensificado quando povos da região adotaram a fé cristã.

As descobertas, descritas no último dia 15 na revista científica PNAS, só foram possíveis porque as condições climáticas do vale do Nilo no antigo território núbio são muito semelhantes às do país vizinho, o Egito.

A secura da área permitiu que fragmentos da pele de pessoas sepultadas ali continuassem preservados mesmo muitos séculos após sua morte, e as técnicas modernas de imageamento flagraram marcas geométricas típicas de tatuagens no corpo dos defuntos.

Assina a nova análise um trio de pesquisadoras: a coordenadora Anne Austin, da Universidade de Missouri em St. Louis (EUA); Brenda Baker, da Universidade do Estado do Arizona (EUA); e Tatijana M. Jovanovi?, do University College de Londres (Reino Unido).

Elas analisaram restos humanos de três sítios arqueológicos diferentes em território sudanês. Os esqueletos correspondem a datações que vão desde o Período Meroítico, por volta de 350 a.C. (mais ou menos equivalente à época helenística, das conquistas de Alexandre, o Grande em diante, no Mediterrâneo), até 1400 d.C., no fim da época medieval.

Trata-se, é claro, de uma faixa de tempo um bocado ampla, na qual o território núbio passou por muitas transformações.

Também conhecido como Cush na Antiguidade, o território abrigou uma sucessão de reinos poderosos que conseguiram manter seu status independente em relação ao Egito e ao Império Romano durante séculos.

Em geral, a divisa entre os núbios e os egípcios era marcada pelas chamadas cataratas do Nilo ?apesar do nome, não são grandes quedas d?água, mas trechos do rio mais rasos e com muitas pedras, que dificultavam a navegação de grande escala.

CONVERSÃO E FRAGMENTAÇÃO

O domínio do Egito costumava ir somente até a primeira catarata (contada do norte para o sul), embora pudesse se estender mais do que isso. Por outro lado, nas épocas em que o poder central dos faraós se enfraqueceu, a Núbia chegou a invadir e dominar o Egito.

No fim da Antiguidade, a exemplo do que também aconteceu com o Egito romanizado, boa parte dos núbios se converteram ao cristianismo. Mais ou menos na mesma época, a área se fragmentou em três reinos, que sobreviveram como entidades cristãs independentes durante boa parte da Idade Média até que a influência do Islã fez com que as versões nativas dessa fé desaparecem.

As tatuagens identificadas pelas pesquisadoras estão ligadas a uma boa parte dessas mudanças históricas. As mais antigas, do Período Meroítico, vêm do sítio de Semna Sul e foram identificadas em fragmentos da pele de três mulheres, uma jovem, no fim da adolescência, e outras duas na casa dos 40-50 anos.

Em dois desses exemplos analisados, as marcas foram feitas na pele do antebraço e das mãos (no terceiro caso, o fragmento de pele estava "solto" e não foi possível saber de que parte do corpo ele veio).

Os desenhos formam estruturas como losangos e motivos vegetais, em um dos casos; em um dos outros, os losangos reaparecem, junto com pontinhos e linhas pontilhadas que se entrecruzam.

A análise de microscopia mostrou que as tatuagens incluíam aglomerados irregulares de pigmento escuro nos pontinhos. Isso indicaria que eles eram feitos com um único instrumento pontudo, com cerca de um milímetro de diâmetro, que perfurava repetidamente a mesma região para inserir o pigmento.

No sítio arqueológico de Kulubnarti, uma pequena ilha do Nilo que abrigava um cemitério cristão usado para sepultamentos entre os anos 650 e 1000 da nossa era, a presença de tatuagens é ainda mais marcante.

Ali, os pesquisadores identificaram 17 pessoas com marcas indiscutíveis da prática, além de 6 outros indivíduos nas quais a presença de tatuagens também é possível (a dúvida é por causa da natureza muito esmaecida das marcas nesse segundo grupo). Estima-se, portanto, que ao menos um quinto dos defuntos enterrados ali tinha tatuagens.

Nos corpos desse cemitério, as marcas se concentram em locais como a testa, as têmporas e a região da bochecha, embora dois indivíduos também apresentem tatuagens nas costas, perto das vértebras do tórax, e outro tenha uma por cima da sobrancelha.

MARCAS EM BEBÊS

O dado mais curioso, porém, talvez seja a idade das pessoas tatuadas: muitas crianças estão na lista, entre elas meros bebês ?na lista dos casos confirmados, o mais novo tinha 18 meses de vida quando morreu, e entre os casos possíveis há uma criança com idade entre 7 meses e 10 meses. No total, 18 dos exemplos indiscutíveis e possíveis foram feitos em pessoas com menos de 11 anos de idade.

Algumas das marcas são superpostas a outras feitas anteriormente ?os pesquisadores usam até o termo "palimpsesto", originalmente usado para descrever manuscritos antigos feitos em pergaminho cujo texto era raspado e substituído por outro.

Os padrões formados pelas tatuagens também são diferentes dos períodos anteriores, com pontos e "riscos", principalmente na testa, formando desenhos parecidos com diamantes estilizados, e feitos com outro tipo de instrumento.

Os motivos para as mudanças ainda não estão claros, mas pode até ser que a conversão ao cristianismo tenha influenciado as alterações nas tatuagens, já que membros de igrejas cristãs tradicionais do norte da África, como os coptas do Egito, também costumavam fazer marcas semelhantes na testa e no rosto. Não se pode descartar ainda uma motivação ligada à medicina tradicional, para tentar tratar febres ou dores de cabeça, por exemplo.