SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - As tradições e festas de fim de ano, como o Natal, ajudam a normalizar o consumo de carne entre as crianças, indica um artigo científico publicado neste mês por pesquisadores da Universidade de Exeter, na Inglaterra.
Segundo o estudo, crianças entre 4 e 11 anos trocam suas preocupações com os animais pelas práticas culturais e avaliam que comer carne em eventos relacionados a tradições é mais aceitável. As tradições se somam, então, ao consumo cotidiano de carne para naturalizar esse hábito.
Os adultos já apresentam um conflito menor na hora de comer animais por vê-los como menos merecedores de preocupação.
Porém, para eles, os animais cuja carne costuma ser servida nessas tradições ganham um status mais elevado. O artigo supõe que, como a ingestão de carne se tornou algo do dia a dia, as tradições requerem um tipo especial de carne, o que atribuiu a esses animais qualidades que os outros não têm.
Normalmente, crianças tendem a valorizar animais mais do que adultos, como mostra um artigo de 2022, segundo o qual a categorização dos animais entre aqueles que são comida e que são pets costuma ser menor entre as crianças.
De acordo com o primeiro autor do artigo publicado neste mês na revista Social Psychological and Personality Science, Alexander Carter, pós-doutorando de psicologia da Universidade de Exeter, a importância que as crianças dão aos animais pode estar relacionada a uma educação infantil ligada a princípios como empatia, cuidado e bondade.
A pesquisa envolveu dois experimentos. No primeiro, os cientistas entrevistaram 429 participantes de 8 a 85 anos e mostraram a imagem de um pássaro desconhecido que recebeu o nome de "harven" junto com a imagem de um homem que foi descrito como comendo o pássaro. Em seguida, os pesquisadores apresentaram um cenário em que harven se tornava alimento em uma celebração cultural especial.
O objetivo era comparar a avaliação das crianças com a dos adultos. Na pesquisa, adolescentes e adultos avaliaram o consumo de carne como mais aceitável do que as crianças.
No entanto, em um cenário de evento cultural importante, a avaliação das crianças mudava, enquanto o de adolescentes e adultos não apresentou diferenças significativas.
Uma vez que foi possível verificar que crianças pesavam princípios morais com convenções sociais, os autores buscaram entender se o mesmo processo ocorria com crianças mais novas.
No segundo experimento, a mesma história foi apresentada para 213 crianças de 4 a 7 anos. Os pesquisadores constataram que os mais novos também adaptavam suas avaliações a partir da tradição.
"Nós pensamos que essa é uma boa evidência para mostrar como esses processos de socialização estão acontecendo em uma idade mais nova do que as pessoas talvez esperem", diz Carter.
O professor Wanderlei Abadio de Oliveira, do programa de pós-graduação em psicologia da PUC-Campinas, acrescenta que isso indica uma dissonância cognitiva, ou seja, quando surge um desconforto mental fruto do conflito entre crenças pessoais e hábitos sociais aos quais precisa se adequar.
"Percebemos que a seleção cognitiva vai servindo também para outros eventos. Saímos dessa discussão que parece banal sobre comer ou não comer carne para aplicar também em outras áreas da vida", reflete Oliveira.
Por outro lado, em uma cultura com mais informação que discute mais alternativas como veganismo e vegetarianismo, há mais possibilidades de que, em outra fase da vida, o indivíduo opte por não comer carne, levando em conta o bem-estar animal.
CULPA TAMBÉM RESULTA DO SOCIAL, DIZ PROFESSOR
O professor Antonio Carlos Barbosa da Silva, do Departamento de Psicologia Social da Unesp (Universidade Estadual Paulista) destaca, porém, que mesmo o conflito sobre comer ou não carne também é uma construção histórica. "Os pesquisadores não consideraram isso", avalia.
Crianças que fazem parte de sociedades que caçam o próprio alimento, participam da produção e enxergam aquilo como parte de sua cultura tendem a não sentir esse conflito, argumenta Silva.
A globalização e a industrialização resultaram em um afastamento da comida e da cultura alimentar, o que faz com que surja a culpa na hora de comer carne, diz o professor. E o estudo mostra que, ao inserir o alimento dentro de uma tradição, as crianças conseguem compreender o consumo da carne.