SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - A evolução das formigas parece ter sido palco de um fenômeno no qual valeu a pena trocar a qualidade pela quantidade, aponta um novo estudo. Ao aumentar o número de operárias em cada formigueiro, o "investimento" na camada protetora que recobre o corpo de cada inseto foi ficando cada vez menor.

É como se cada colônia de formigas decidisse produzir peças numerosas e descartáveis, em vez de poucos componentes de excelência. Ao menos em termos evolutivos, a aposta parece ter funcionado: as linhagens dos insetos que seguiram essa estratégia inconsciente se diversificaram mais do que as que não adotaram esse caminho.

As conclusões saíram no último dia 19 na revista especializada Science Advances, num trabalho coordenado por Arthur Matte, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), e Evan Economo, da Universidade de Maryland (Estados Unidos).

A dupla e seus colegas investigaram a variabilidade da espessura da cutícula, a resistente camada externa da anatomia dos insetos que os protege de ataques de predadores e de outros tipos de danos mecânicos, além de servir de barreira contra micróbios, variações de temperatura e perda de umidade.

As funções da cutícula têm semelhanças com a da pele humana, mas ela é ainda mais essencial para a sobrevivência dos insetos, além de exigir um investimento considerável de nutrientes para ser produzida pelo organismo. O detalhe intrigante é que, nas formigas, a espessura dessa camada apresenta uma variação de cerca de cem vezes (entre 1,3 micrômetro e 110 micrômetros ?cada micrômetro corresponde a um milionésimo de metro).

A hipótese aventada pelos pesquisadores é que tamanha variabilidade provavelmente tem a ver com diferentes tipos de investimento de cada espécie na produção da cutícula. Esse tipo de raciocínio econômico é bastante comum nos estudos evolutivos.

Embora os seres vivos não sejam capazes de escolher conscientemente como vai se desenrolar seu desenvolvimento (e, mesmo que o compreendessem, não conseguiriam controlá-lo), a seleção natural faz isso por eles. Isso porque ela acaba diferenciando entre as estratégias que produzem muitos descendentes e as que têm menos sucesso. Só as primeiras se perpetuam na população e, na prática, equivalem a um investimento bem-sucedido.

Para testar a ideia, os pesquisadores usaram técnicas de microtomografia para mapear a cutícula de uma variedade considerável de espécies de formigas. Trabalharam com 880 indivíduos, com as operárias representadas em 440 espécies diferentes, as rainhas em 136 espécies e os machos em 73 espécies. Além disso, compararam a cutícula das formigas com a de insetos "primos" delas, como as vespas.

Entender as diferenças entre rainhas e operárias, de um lado, e entre os sexos, de outro, é importante porque tanto rainhas quanto machos passam quase todo o seu ciclo de vida protegidos dentro do formigueiro, enquanto as operárias desempenham uma grande variedade de tarefas, muitas vezes fora do ninho, o que poderia afetar a necessidade de desenvolver a cutícula.

De fato, a análise dos pesquisadores confirmou a existência de uma variação tremenda nas cutículas das operárias. Nas duas espécies com maior e menor investimento nessa parte da anatomia, o tegumento corresponde a 35% e 6,6% do volume do corpo dos bichos, respectivamente. A questão era saber se havia uma associação entre padrões evolutivos e essa variabilidade, coisa que os pesquisadores buscaram analisar levando em conta as relações de parentesco entre as espécies e fatores como tamanho da colônia, habitat, dieta e presença de espinhos defensivos na cutícula.

Em tese, diferenças no habitat poderiam influenciar a espessura cuticular, já que em certos contextos a tendência a perder umidade do organismo é bem mais alta, o que exigiria mais proteção externa. Os espinhos defensivos exigiriam mais investimento também, enquanto a dieta poderia interferir na disponibilidade de nutrientes necessários para "montar" a cutícula ao longo do desenvolvimento.

Tanto as condições climáticas do habitat quanto a alimentação estão associadas com essas variações ?espécies de lugares mais quentes, ou as que são carnívoras ou se alimentam de fungos, tendem a ter cutículas mais espessas, em média. Mas o fator com associação mais forte com as variações na cutícula é mesmo o tamanho da colônia: quanto mais indivíduos no formigueiro, em geral, mais fina é a camada externa do corpo.

Os pesquisadores calculam que essa variável explica quase metade da variabilidade entre as espécies de formigas. E, mais importante, que há uma associação entre a produção em larga escala de operárias "de segunda" e a diversificação das espécies de formigas ao longo do tempo.

A equipe de cientistas propõe que esse processo pode ter facilitado o aumento da complexidade social dos formigueiros e a colonização de ambientes mais pobres em recursos pelos bichos.