SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - O cenário lembrava "Game of Thrones", mas um dos principais problemas do cotidiano era mesmo a verminose. A conclusão nada épica vem de um estudo sobre a guarnição de soldados do Império Romano que, durante séculos, ficou postada perto da grande muralha que separava os territórios imperiais na Bretanha (atual Inglaterra) dos "bárbaros" do norte da ilha.
Nos sedimentos vindos dos ralos das latrinas e dos banhos usados pelos militares, uma equipe de arqueólogos identificou, ovos de lombriga (gênero Ascaris) e de verme-chicote (Trichuris), bem como a presença da giárdia, um parasita microscópico. Todos são transmitidos pela chamada rota fecal-oral (das fezes para a boca). Isso provavelmente significa que os alimentos e a água dos habitantes da fortaleza de Vindolanda estavam contaminados com ovos dos vermes, seja pelo uso de esterco na adubação dos alimentos cultivados ali, seja por falta de higiene e saneamento básico.
Detalhes do achado estão em edição de dezembro do periódico especializado Parasitology. A equipe de pesquisadores liderada por Marissa Ledger, da Universidade McMaster, no Canadá, usou uma peneira de malha microscópica e outras técnicas de laboratório para encontrar ovos e cistos dos parasitas.
A área em que fica Vindolanda começou a abrigar militares das forças imperiais a partir do fim do século 1º d.C., e a ocupação ali se manteve até por volta do ano 370 d.C. Algumas décadas após a fundação do forte, ele passou a ser integrado às defesas da chamada muralha de Adriano.
Construída a mando do imperador romano de mesmo nome, a muralha tinha funções de defesa, mas também de controle aduaneiro, amortecendo possíveis ataques e regulando as relações comerciais e diplomáticas com os povos da atual Escócia e Irlanda, não submetidos formalmente ao domínio de Roma.
Com quase 120 km de extensão, cortando o atual território inglês do mar do Norte até o mar da Irlanda, a muralha é a maior estrutura construída pelos romanos na província e inspirou a fortificação feita de gelo eterno no norte do continente de Westeros que aparece na série "Game of Thrones" e nos livros que a inspiraram.
A grande maioria dos soldados da guarnição de Vindolanda não eram de origem italiana, fazendo parte dos chamados "auxilia", tropas recrutadas entre grupos que não tinham cidadania romana, tanto de cavalaria quanto de infantaria. No local, os registros indicam a presença de soldados batavos (da atual Holanda), gauleses (oriundos da França de hoje) e espanhóis de uma etnia ancestral dos bascos modernos.
A ocupação da área trouxe tanto as fortificações sofisticadas que caracterizavam as fronteiras romanas quanto uma infraestrutura de lazer, com a construção de casas de banho, e o uso da escrita ?foram preservadas ali mais de mil tabuinhas finas com documentos e mensagens grafadas a tinta. Os textos preservam desde informações burocráticas sobre o cotidiano do quartel quanto cartas pessoais. As tabuinhas deixam claro que, além dos soldados, seu núcleo familiar, com mulheres e crianças, também vivia em Vindolanda.
Foi justamente graças à infraestrutura deixada pela ocupação militar que que Ledger e seus colegas conseguiram investigar o que andava acontecendo com os intestinos dos "auxilia" de Vindolanda. Escavações anteriores já tinham identificado o sistema de drenagem de resíduos que saía das latrinas dos banhos públicos do forte e descia até um riacho no vale ao norte da fortaleza.
A vala de escoamento, que tinha uma profundidade de 1,3 metro depois da saída da latrina e ia ficando mais rasa conforme se afastava das áreas ocupadas, foi recoberta por outros sedimentos e pedras que a deixaram selada depois que as tropas abandonaram Vindolanda. Assim, é possível ter razoável grau de certeza de que os sedimentos no fundo do canal de escoamento de fato correspondem ao que sobrou dos eflúvios despejados ali pelos antigos ocupantes.
A equipe coletou dezenas de amostras ao longo do canal, correspondendo a diferentes momentos da ocupação de Vindolanda. Os sedimentos foram hidratados e peneirados, e o que restou após esse processo foi examinado com microscópios, com aumento da imagem de até 400 vezes, suficiente para detectar possíveis parasitas.
E, de fato, foi o que aconteceu. Cerca de um terço das amostras continha ovos de vermes. Os mais comuns são de lombrigas, seguidos por vermes-chicote e, em casos mais raros, os dois juntos na mesma amostra. Uma das amostras também apontou a presença de giárdia por meio de uma análise bioquímica.
Curiosamente, as mesmas condições precárias de saneamento básico que favorecem a presença dos vermes também estimulariam a disseminação de vírus pela rota fecal-oral, e isso pode explicar documentos de Vindolanda que falam em soldados fora de combate por causa de um surto de conjuntivite. Acontece que há vírus transmitidos pela falta de higiene que causam justamente esses sintomas nos olhos, segundo os pesquisadores.