SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O cenário de centenas de usuários de crack que durante anos marcou o centro de São Paulo já não existe mais. Em comparação com os dias turbulentos do passado recente, a região hoje experimenta uma estagnação aparente, sem bombas de gás, disparos de balas de borracha, arrastões, protestos, tiros e mortes.
No entanto, não é possível dizer que a cracolândia acabou. A grande aglomeração deu lugar a pontos menores, com concentrações circulares de dependentes químicos que ainda consomem a droga pela área.
Vídeos feitos pela reportagem na rua Apa e na alameda Glete nas últimas semanas confirmam que a cena aberta de uso de drogas segue a todo vapor, com a venda e o consumo em calçadas.
A situação contrasta com o discurso do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que insiste em afirmar que a cracolândia acabou ?declaração que já havia sido feita, sem se confirmar, por João Doria, quando foi prefeito.
"Quando a gente fala que acabou a cracolândia é porque aquele cenário que a gente tinha de venda e uso de drogas ostensivo, de território livre, isso não tem mais mesmo. É só ir lá no centro e ver", declarou o governador em 13 de novembro.
Questionado sobre a pulverização de usuários, Tarcísio respondeu: "Sempre aconteceu e vai continuar acontecendo, como em qualquer grande centro". Em entrevista para a reportagem em dezembro, o novo secretário da Segurança Pública do estado, Osvaldo Nico Gonçalves, disse que o fim da cracolândia como ela era foi a maior entrega da pasta na gestão.
A afirmação do governador é contestada pelo promotor Arthur Pinto Filho, da Promotoria de Justiça da Saúde Pública do Ministério Público na capital paulista.
"Não acabou, de jeito nenhum. Ela se dispersou pela cidade, se atomizou. Hoje eles ficam em pequenos grupos móveis. Por quê? Porque quando a GCM [Guarda Civil Metropolitana] percebe um pequeno grupamento de pessoas, chega ali e dispersa as pessoas novamente, e elas vão para outros lugares", relata.
Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública estadual reforçou o fim da cracolândia. "A área anteriormente conhecida como 'cracolândia', que por décadas concentrou até 2.000 pessoas simultaneamente na chamada cena aberta de uso de drogas, não existe mais", afirma a pasta em nota.
Para o governo, o que se "observa são pequenos grupos transitórios, que são monitorados de forma permanente pelas forças de segurança e acompanhados por equipes de saúde e desenvolvimento social, com abordagens individualizadas e humanizadas voltadas à reinserção social e tratamento desse público".
Por sua vez, a Prefeitura de São Paulo usa um tom mais moderado, sem declarar o fim da cracolândia.
A gestão Ricardo Nunes (MDB), também em nota, afirma que tem um trabalho contínuo de oferta de tratamento e acolhimento a pessoas em situação de rua e vulnerabilidade, além das ações de zeladoria e segurança, combatendo o tráfico de drogas e outros crimes.
"Equipes de assistência social percorrem diariamente pontos de ocupação momentânea ou periódica para busca ativa dessa população, e 40 equipes do Consultório na Rua dão atendimento em saúde. Nesses pontos, abordagens de rotina são realizadas por 1.600 agentes de saúde e assistência social", diz a administração.
Em maio, a principal concentração na rua dos Protestantes, que em alguns momentos chegava a reunir entre 300 a 400 pessoas, se dispersou.
Para o governo, o sumiço repentino da aglomeração foi resultado de trabalho contínuo e integrado, entre o estado e a prefeitura, com atuação das áreas de segurança, saúde e assistência social.
"A estratégia adotada envolveu a asfixia financeira do tráfico, a prisão de lideranças do crime organizado e a ampliação do atendimento social e de saúde", afirma a secretaria.
Logo no início da gestão, Tarcísio demonstrou que trataria a cracolândia como prioridade. Uma grande quantidade de policiais militares passou a atuar na área ?em carros, motos, a pé, a cavalo e com apoio do helicóptero Águia, presença muito superior a de outros bairros da cidade.
Uma das principais tentativas de solucionar o problema foi levar a cracolândia para as imediações da favela do Gato, no Bom Retiro, em julho de 2023. Num sábado à noite, os dependentes químicos foram escoltados até o local. A estratégia fracassou: horas depois, todo o grupo havia voltado para o entorno da rua dos Protestantes.
A Protestantes foi o último endereço bloqueado para veículos devido à aglomeração. Uma caminhada pelo bairro Campos Elíseos, no entanto, atesta que o consumo de crack continua intenso. À noite, os dependentes químicos ficam ainda mais visíveis, iluminados pelas chamas dos cachimbos na penumbra.
Na noite de 22 de dezembro, uma segunda-feira, um grupo com cerca de 30 usuários ocupava as calçadas das ruas Apa e General Júlio Marcondes Salgado. No mesmo horário, por volta das 20h30, outro grupo chegava à rua Vitorino Carmilo, a poucos metros do 77º DP (Santa Cecília), um dos pontos de concentração mais significativos nos últimos dias.
Na tarde de sexta-feira (19), cerca de 30 usuários estavam na calçada da alameda Glete, entre a rua Conselheiro Nébias e o terminal Princesa Isabel.
Os grupos homogêneos são apenas reflexo da dispersão. No Campos Elíseos, dependentes químicos consomem crack em diversas vias, principalmente no fim da tarde, quando os comércios fecham.
Entre os locais onde a reportagem identificou usuários estão as avenidas Rio Branco e Duque de Caxias, as alamedas Barão de Limeira e Barão de Campinas e as ruas Vitória e dos Gusmões. Fora do bairro, também há concentrações na rua Professor Laerte Ramos de Carvalho, na Bela Vista, e na travessa dos Estudantes, na Sé.
Os usuários são afastados por viaturas da Polícia Militar e da GCM a todo momento. Policiais e guardas nem sequer descem dos carros ? apenas a aproximação ou o toque da sirene faz os dependentes químicos se levantarem, pegarem seus pertences e vagarem até encontrar um novo local.
O promotor critica a estratégia. "É péssimo, porque o pessoal da assistência social e da saúde não consegue achar mais ninguém. Os equipamentos de saúde que tinham no centro estão sendo fechados. Lamentavelmente, não acabou", afirma.
Pinto Filho analisa a situação atual como de absoluto abandono. "Piorou muito a situação das pessoas. Veja: elas entram nos hospitais e nas comunidades terapêuticas e saem da mesma maneira que entraram, sem trabalho, sem renda, sem moradia. E o que acontece com elas? Voltam para a rua, que é o único lugar que elas têm."
Para o promotor, gasta-se muito dinheiro sem apresentar solução para o problema.
O psiquiatra Flávio Falcone, que atua há mais de uma década na cracolândia com redução de danos, também critica a situação atual.
"É o mesmo movimento de dispersão utilizando o aparato policial. Tem praticamente uma viatura em cada esquina. Mas eles continuam espalhados. Obviamente, não acabou. Isso é uma estratégia de limpar o território. Não tem mais aquela aglomeração tradicional, mas o problema continua."