SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em meio à rotina acelerada, ao avanço do delivery e às refeições cada vez mais feitas diante de telas, uma prática cotidiana volta a ganhar novo significado: cozinhar. Não apenas como forma de preparar alimentos, mas como estratégia de cuidado emocional, reconexão sensorial e promoção da saúde mental.

Conhecida como mindful cooking ou terapia na cozinha, a abordagem propõe transformar o ato de cozinhar em uma experiência de atenção plena, com efeitos que vão além do prato e alcançam o bem-estar psicológico, os vínculos sociais e a relação com o próprio corpo.

"A gente perdeu o momento presente do cozinhar", afirma o psiquiatra Marcus Zanetti, doutor em ciências pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador da relação entre nutrição, eixo intestino-cérebro e saúde mental.

Ao recorrer ao delivery, diz o psiquiatra, delega-se todo o processo alimentar. Enquanto isso, as pessoas continuam respondendo mensagens, navegando nas redes sociais, e a comida chega embalada em plástico ou papelão impermeabilizado com substâncias químicas.

"Estamos cada vez mais distantes das necessidades do corpo e mais expostos a fatores ambientais invisíveis, como toxinas, estresse e excesso de estímulos", afirma.

Para Zanetti, cozinhar ativa um conjunto de experiências sensoriais raramente acessadas na vida cotidiana. "É toque, cheiro, visão, paladar, audição. É uma massagem dos sentidos muito completa. Do ponto de vista neurológico, isso tem um impacto enorme."

Essa ativação sensorial é um dos pilares do mindful cooking, explica a nutricionista Vera Salvo, co-coordenadora do projeto nacional de mindful eating do Departamento de Psicobiologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

"Quando a gente fala em atenção plena, a cozinha é um grande laboratório. Ali você tem aromas, cores, sons, texturas. Utilizar os cinco sentidos é uma forma muito potente de se ancorar no momento presente", afirma.

Quando a gente fala em atenção plena, a cozinha é um grande laboratório. Ali você tem aromas, cores, sons, texturas. Utilizar os cinco sentidos é uma forma muito potente de se ancorar no momento presente

nutricionista e co-coordenadora do projeto nacional de mindful eating do Departamento de Psicobiologia da Unifesp

Segundo ela, esse processo é especialmente relevante para crianças, mas funciona igualmente para adultos. "O simples ato de cortar, refogar, ouvir o som do alimento na panela, tocar e manusear os ingredientes já traz presença. É sair da mente acelerada e voltar para o corpo."

Zanetti observa que a indústria de alimentos ultraprocessados explora intensamente o sistema de recompensa do cérebro, criando sabores hiperestimulantes que dificultam o reconhecimento do gosto natural dos alimentos, especialmente entre crianças e adolescentes.

"O cérebro se acostuma a estímulos muito intensos. Quando a pessoa prova um alimento simples, acha sem graça. Isso não é natural, é condicionado", afirma. Cozinhar, segundo ele, ajuda a "reeducar o paladar" e a reduzir a dependência desses produtos.

Para Salvo, a pandemia evidenciou esse potencial terapêutico da cozinha. "Muitas pessoas encontraram ali um refúgio para sair do excesso de pensamentos. Cozinhar com atenção é uma forma de mindfulness aplicada ao cotidiano."

A nutricionista Adriana Kachani, doutora pela USP e referência em nutrição funcional, vê no mindful cooking uma ferramenta poderosa tanto de educação alimentar quanto de cuidado emocional. "Cozinhar com atenção plena é estar presente no momento do preparo. É transformar uma atividade rotineira em algo especial", diz.

Ela explica que, ao prestar atenção na resistência da cenoura ao ser cortada, no som da faca na tábua ou no cheiro do molho borbulhando, a relação com a comida muda completamente. "Se a refeição vira um momento especial, você planeja melhor, escolhe melhor os ingredientes. Isso tem efeitos diretos na saúde."

Kachani ressalta que o mindful cooking não exige receitas elaboradas nem técnicas sofisticadas. "Pode ser algo simples, como lavar o arroz com atenção ou montar um prato colorido. O foco não é performance, é presença."

A prática também contribui para reduzir a rigidez e a autocrítica, comuns em pessoas com relação conflituosa com a comida. "Nem sempre dá certo, e tudo bem. Cozinhar desenvolve criatividade, flexibilidade e uma relação mais gentil consigo mesmo", afirma. Para ela, esse aspecto é especialmente relevante em um contexto de dietas restritivas, culpa alimentar e idealização do "corpo perfeito".

Salvo reforça que essa mudança vai além do prato ou da balança. Em seu pós-doutorado, desenvolvido em unidades básicas de saúde da periferia da zona sul de São Paulo, ela acompanhou grupos de mulheres com excesso de peso em programas de mindfulness e mindful eating.

"Muitas chegavam achando que era só um programa de alimentação, mas percebiam que estavam aprendendo coisas para a vida. Mudavam a relação com o corpo, com os filhos, com o companheiro", relata.

Segundo ela, os relatos de transformação foram profundos. "Elas diziam: ?aprendi que não preciso gostar, só preciso aceitar?. É uma mudança que acontece de dentro para fora."

A dimensão afetiva da comida também aparece com força. Zanetti lembra da avó italiana e do sabor de um nhoque reencontrado décadas depois. "A memória afetiva estava toda ali. A comida conecta com identidade, pertencimento e história."

Salvo observa que comer junto potencializa esse efeito. "O comer em companhia faz parte do nosso Guia Alimentar Brasileiro. Em épocas como o Natal, isso fica ainda mais evidente. O alimento aproxima pessoas, cria afeto, fortalece vínculos."

Ela ressalta que não é preciso preparar pratos sofisticados. "O que quer que eu esteja cozinhando pode ser feito de forma atenta ou automática. A diferença está na presença." Segundo ela, mesmo um alimento preparado com cuidado pode perder seu sentido se quem come estiver ausente. "A atenção precisa estar tanto no preparo quanto no comer."

Essa visão tem inspirado iniciativas estruturadas no Brasil. O Le Cordon Bleu São Paulo lançou recentemente o programa Therapy by Cooking, uma imersão de cinco dias que propõe a culinária como prática de equilíbrio emocional, mental e físico, integrando conceitos de mindfulness, neurogastronomia e nutrição consciente.

"A ideia é resgatar a consciência do ato de cozinhar como forma de cuidado", afirma Patrick Martin, diretor técnico e executivo do Le Cordon Bleu Brasil. "Cozinhar é um ato de presença."

Para Salvo, o interesse crescente por essas abordagens reflete um desconforto mais amplo com a alimentação contemporânea. "A forma como nos alimentamos influencia como nos relacionamos conosco e com os outros. O alimento é um caminho de autoconhecimento e autocuidado."

Zanetti concorda. "Comemos rápido, sozinhos, distraídos. E depois não entendemos por que estamos ansiosos, cansados, desconectados. A cozinha pode ser um espaço de pausa, regulação emocional e reconexão."