RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Eram pouco depois das 9h da manhã quando homens armados entraram no ônibus em que a jornalista Marcelle Félix, 30, seguia de Anchieta, na zona norte do Rio de Janeiro, para o trabalho na Curicica, na zona sudoeste da cidade. O coletivo seguia pela rua Alcobaça quando foi parado e os passageiros obrigados a descer. No episódio ocorrido em julho, mais de 20 coletivos foram atravessados no caminho, em represália a uma operação policial.
"Minha maior preocupação era eles atearem fogo no ônibus, como já tinha acontecido em outros lugares. É uma sensação de desespero, de impotência", disse Marcelle, mãe de uma menina de dois anos. Ela conseguiu voltar para casa, mas perdeu o dia de trabalho.
Levantamento do Rio Ônibus, sindicato que representa as empresas de ônibus da cidade, elaborado a pedido da reportagem, aponta que, entre janeiro e outubro de 2025, 775 linhas tiveram itinerários desviados por motivos de segurança, enquanto 249 coletivos foram usados como barricadas. Ao longo do ano, o desvio dessas linhas afetou a rotina de centenas de milhares de pessoas que dependem diariamente do transporte público no Rio.
Meses depois, no dia da megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha, a irmã mais nova de Marcelle, de 22 anos, passou por situação semelhante ao tentar ir trabalhar. Naquela ocasião, o impacto da violência sobre a mobilidade atingiu um patamar inédito.
Segundo o Centro de Operações da Prefeitura, o horário de pico do retorno para casa foi antecipado em quatro horas, diante do fechamento de vias e da paralisação do transporte. Empresas privadas e repartições públicas liberaram funcionários mais cedo para reduzir deslocamentos.
O Rio Ônibus informou que, pela primeira vez em sua história, recomendou que veículos que circulavam por áreas de risco retornassem às garagens. Ao longo do dia, 71 coletivos foram tomados como barricadas, e mais de 200 linhas foram impactadas.
Sem transporte, muitos passageiros seguiram a pé. Na avenida Ayrton Senna, na região da Barra Olímpica, próximo ao terminal do BRT, centenas de pessoas caminhavam no fim da tarde. O operador de telemarketing Rafael Souza, 29, disse que precisaria andar cerca de 5 quilômetros para chegar em casa. "Não tinha BRT, não tinha ônibus, não tinha o que fazer. O jeito era voltar andando mesmo."
A violência armada também afetou o sistema ferroviário. Dados da SuperVia mostram que tiroteios interromperam a circulação de trens ao menos 18 vezes em 2025, até o fim de novembro, sobretudo nos ramais Belford Roxo e Gramacho/Saracuruna, que atravessam áreas de conflito na zona norte e na Baixada Fluminense.
As paralisações variaram de poucos minutos a períodos prolongados. Em agosto, a circulação ficou suspensa por mais de 18 horas em um trecho do ramal Belford Roxo. Em março, dois confrontos armados no mesmo dia provocaram interrupções que somaram mais de 12 horas.
Moradora de Vigário Geral, a doméstica Eliane Santos, 41, diz que passou a sair mais cedo de casa para evitar ficar presa no caminho. "Quando tem tiroteio, o trem para sem aviso. Já fiquei horas esperando sem saber se ia conseguir voltar", afirmou.
No sistema de ônibus articulados, a Mobi-Rio informou que ocorrências policiais levaram à interrupção da operação do BRT 18 vezes em 2025, totalizando 23 horas de paralisação, sendo 10 horas no corredor Transbrasil e 13 horas no Transcarioca.
Para a cientista social Silvia Ramos, diretora do (CESeC) Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a violência no transporte tem um efeito multiplicador sobre a insegurança urbana.
"O problema da violência na mobilidade é que ela pega todo mundo de surpresa. A pessoa está dentro de um ônibus, de um trem ou de um BRT, em tese em um espaço seguro, e de repente se vê no meio de um tiroteio", afirmou. "Isso expande a sensação de que não se está seguro em nenhum lugar da cidade."
Segundo ela, confrontos armados em grandes vias e áreas de circulação passaram a afetar diretamente o deslocamento diário. "Mobilidade é tudo. Quando ela não é segura, transmite insegurança para todos os outros aspectos da vida urbana", disse.
Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Militar afirmou que passou a adotar protocolo de comunicação prévia das operações policiais junto às empresas de transporte coletivo, além de reforçar o policiamento nas vias adjacentes às áreas de atuação.
Segundo a corporação, cabe às empresas decidir de forma autônoma sobre desvios de itinerários ou interrupções temporárias do serviço. A PM informou ainda que disponibiliza à Rio Ônibus acesso ao sistema tecnológico 190 integrado para monitoramento em tempo real, além da possibilidade de uso de reconhecimento facial nos coletivos.
A secretaria afirmou ainda que o uso de ônibus como barricadas tem como objetivo dificultar ou interromper ações policiais.