SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - No início de dezembro de 2024, o nome de um cientista brasileiro foi parar no 13º lugar de um ranking: o de pesquisadores com mais artigos retratados, ou "despublicados", lista elaborada pelo site Retraction Watch Database. E, neste ano, continuou lá.

O biólogo Guilherme Malafaia, do Instituto Federal Goiano (Goiás), teve, no último ano, 46 artigos científicos retratados, todos da revista científica Stoten (Science of the Total Environment), da editora Elsevier.

O motivo das retratações, disponíveis no portal do Retraction Watch, foi a suposta inserção de informações falsas nas indicações de revisores para seus manuscritos. Malafaia negou a acusação e afirmou não ter tido espaço para ampla defesa durante o processo.

O caso chamou a atenção pelo número elevado de artigos retratados atribuídos a um único pesquisador e, segundo especialistas, leva ao debate sobre más práticas na ciência e os incentivos que as favorecem.

Embora sejam raros os casos de cientistas com dezenas de artigos retratados, o crescimento acelerado da produção científica global tem levado também a um aumento no número de retratações, de acordo com Fábio Kon, professor titular de ciência da computação no IME (Instituto de Matemática e Estatística) da USP.

"É importante ressaltar que esses casos são raros, e a gente tem centenas de milhares de artigos publicados todos os anos e apenas algumas centenas acabam retratados por problemas graves. Dito isso, é algo que preocupa e que deve ser coibido", disse ele.

Kon, que coordena um curso gratuito da USP sobre boas práticas científicas disponível na plataforma Coursera, associa o aumento das retratações à lógica acadêmica que valoriza a publicação em grande volume. "À medida que aumenta a escala da ciência e a quantidade de artigos publicados, precisamos fortalecer os mecanismos de controle para garantir a integridade da pesquisa."

Segundo ele, a forma como os pesquisadores são avaliados ?especialmente em processos de concessão de bolsas e concursos públicos? contribui para esse cenário. "Infelizmente, vejo muitas universidades que na própria regra do concurso dizem que tal 'paper' desse tipo vale tantos pontos, o que não é recomendado hoje pelas diretrizes de boas práticas em publicação e pesquisa."

"A gente viu na última década algumas dessas editoras [predatórias] crescerem muito, e hoje em dia têm centenas de milhares de artigos publicados a cada ano, obtendo lucros bilionários às custas da ciência e da sociedade", acrescenta Kon.

Na avaliação do docente, o foco em quantidade, e não em qualidade, cria um ambiente permissivo para a má conduta científica. "Se há um incentivo para aumentar a todo custo, o número de publicações em detrimento da qualidade da pesquisa, vamos ter aqueles que preferem ter cinco 'papers' malfeitos publicados em revistas duvidosas do que ter um ou dois bons em uma revista de primeira linha."

Ele afirmou também que o problema de integridade científica está relacionado à desonestidade. "A maioria das pessoas é honesta, mas em toda atividade humana você tem pessoas desonestas."

Para dar vazão ao volume crescente de manuscritos, parte dos autores recorre a revistas conhecidas como "paper mill journals", que favorecem a quantidade em detrimento da qualidade. Essas publicações costumam prometer revisão e decisão editorial em poucas semanas, o que deve ser visto com um sinal de alerta, disse Kon. "Nenhum cientista sério consegue fazer um parecer correto e profundo em uma semana. E eu já vi alguns dos pareceres dessas revistas."

Os dados de produtividade acadêmica refletem essa expansão. O último levantamento feito pela Elsevier e pela agência Bori, divulgado neste mês, aponta que no mundo quase 3 milhões de artigos foram publicados apenas no último ano.

Embora mais modestos em relação a esse volume observado, o número de retratações também cresceu, passando de 1.542, em 2015, para 5.881 em 2024, de acordo com os dados mais recentes disponíveis na plataforma Retraction Watch.

Ivan Oransky, cofundador do Retraction Watch e diretor-executivo do Centro para Integridade Científica, disse que cerca de 1 em cada 500 artigos é retratado anualmente no mundo ?o equivalente a 0,2%. "Acreditamos que esse percentual deveria ser maior, em torno de 2% ou até mais. Infelizmente, a fraude e a má conduta científica são mais comuns do que se imagina." Esse era o quadro até 2024.

O problema, para o jornalista, vai além de revisões falsas e inclui o crescimento de "papermills", que oferecem pacotes completos para publicação acelerada. "E tudo isso está ligado à pressão de ?publicar ou perecer? [publish or perish, em inglês]."

Criado em 2010 por Oranksy e Adam Marcus, hoje editor-chefe da Medscape, o Retraction Watch surgiu após Marcus revelar um dos maiores escândalos de má conduta científica do século, envolvendo o médico Scott Reuben, que fraudou dezenas de estudos e foi condenado à prisão obter financiamento para pesquisas inexistentes. "Logo percebemos que não dava para acompanhar todas as retratações e que os bancos de dados disponíveis eram incompletos", afirmou Oransky.

Com financiamento filantrópico obtido a partir de 2015 (antes, o trabalho era voluntário), o Retraction Watch Database (RWD) foi lançado publicamente em 2018 e tornou-se a principal referência global para análises quantitativas sobre retratações científicas. "Desde então, as editoras passaram a ser mais transparentes nos avisos de retratação."

Incorporada em 2023 à Crossref, organização sem fins lucrativos que gerencia identificadores digitais de artigos (os indicadores DOI de artigos científicos), a base de dados hoje é gratuita e permite que qualquer interessado analise padrões, tendências e falhas sistêmicas do sistema de publicação.

Apesar disso, Oransky avalia que as editoras científicas tendem a se pôr como vítimas do problema, quando também fazem parte dele. "As métricas de produtividade e os rankings acadêmicos criaram um mercado viciado em índice H e número de citações. Quando se olha para isso à luz do dia, o problema é evidente, mas as editoras evitam reconhecer o seu papel no sistema de produtivismo."