GIULIANA MIRANDA
LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) - Responsável pelo protesto que fez o presidente da Funai abandonar um evento em Madri em julho, o indigenista Ricardo Henrique Rao, que deixou o Brasil em 2019 após denunciar o envolvimento de policiais em crimes contra povos indígenas, sofreu um infarto cerca de uma semana após o embate com o antigo chefe.
Rao, 51, atribui o problema cardíaco ao estresse causado pelas ameaças contra sua mulher e seu filho de 4 anos. Os ataques nas redes sociais começaram depois da repercussão de sua intervenção no evento na Espanha. Na ocasião, ele chamou o presidente da Funai de miliciano e assassino, responsabilizando Marcelo Xavier pelas mortes de Bruno Pereira e Dom Philips. "Estou brigando para que minha mulher e meu filho saiam do Brasil o quanto antes. Já começaram nos insultos, o discurso de ódio", afirmou.
O indigenista Ricardo Rao quando era agente da Funai; atualmente, ele vive em autoexílio em Roma (ITA), após passar dois anos na Noruega O indigenista precisou passar por uma cirurgia de emergência para a colocação de um stent e está internado na UTI de um hospital em Roma, cidade onde mora desde março. Ele vive atualmente em um prédio ocupado por uma organização de sem-teto. "Quando a gente tem uma causa justa, isso torna as dificuldades mais suportáveis. Quem trabalha com índio, aprende a precisar só do essencial mesmo. Então, comigo mesmo, eu estou muito bem. Tenho comida, tenho um teto", afirma.
Rao foi colega de Bruno Pereira -assassinado em junho no Vale do Javari- no curso de formação de política indigenista. Ele afirma que provavelmente teria o mesmo destino do antigo companheiro, caso tivesse permanecido no país. "Nós entramos juntos na Funai. Ele era um homem bom. Desde o primeiro momento deu para ver que ele tinha um interesse e uma dedicação que ia muito além de ter só um cargo público."
Rao saiu do Brasil às pressas, no fim de 2019, após entregar à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o documento intitulado "Atuação miliciana conectada ao crime organizado madeireiro, ao narcotráfico e a homicídios cometidos contra os povos indígenas do Maranhão -- Um breve dossiê".
"Eu entreguei um dossiê mostrando como os milicianos já haviam infiltrado tudo lá no Maranhão", afirma ele, que acusa o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) de conivência com os crimes. O texto aponta o suposto envolvimento de vários policiais com atividades ligadas ao crime em terras indígenas.
"Os governadores hoje não mandam, não exercem o poder efetivo sobre as polícias, que têm núcleos criminosos bolsonaristas", diz o indigenista, que afirma que o governo do Maranhão não agiu para apurar as denúncias e afastar os acusados.
Em nota, a Sedihpop (Secretaria dos Direitos Humanos e Participação Popular) do Maranhão afirmou que só tomou conhecimento dos fatos relatados por Rao "no dia 22 de julho de 2022, por meio de comunicação oficial da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados". A entidade ressalta que, desde então, "estão sendo tomadas todas as medidas cabíveis e emergenciais em relação ao caso, encaminhando a demanda para a SSP (Secretaria de Estado de Segurança Pública) e acompanhando os desdobramentos, por meio da Secretaria Adjunta dos Povos Indígenas e da superintendência de Combate à Violência Institucional".
Em relação ao teor das denúncias, a Funai afirmou que realiza "ações contínuas de proteção, fiscalização e vigilância territorial em áreas indígenas do estado do Maranhão". "Essas ações são fundamentais para coibir ilícitos e proteger as comunidades indígenas", completou.
Advogado, Rao diz que a literatura é uma de suas paixões e que escreveu um livro, ainda não publicado, sobre seu exílio --ele também já escreveu diversos poemas e contos.
O indigenista entrou na Funai, em 2010, aos 40 anos, através de um concurso. Segundo ele, a decisão de trabalhar com os os indígenas teve influência da mãe, que atuou na entidade como enfermeira.
O trabalho na área rendeu algumas inimizades e um processo por ameaça movido por um outro funcionário da Funai. Rao reconhece as ofensas, mas acusa o colega de fazer parte de uma suposta "banda podre" da instituição.
Ele acabou exonerado da fundação em novembro de 2020, em decisão assinada por Xavier. O ex-servidor contesta a legitimidade da medida e diz acreditar que possa recuperar o cargo em caso de vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas próximas eleições presidenciais.
Por meio de sua assessoria, a Funai defendeu a legalidade da exoneração, afirmando que ela aconteceu em "razão de inabilitação em estágio probatório". A instituição afirmou ainda que "todos os trâmites administrativos seguiram o devido processo legal e contaram com ciência de Rao".
O indigenista afirma ainda que acelerou os trâmites para se casar legalmente com a companheira e, assim, garantir o acesso dela à cidadania italiana -com isso, ela pode ir morar na Europa.
Foto: Kenzo Tribouillard/AFP
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