Reclamações contra o SUS já superam índice de 2009 Maiores índices recaem sobre o não cumprimento de horários de consultas agendadas e sobre a falta de recursos humanos

Pablo Cordeiro
Colaboração*
14/5/2010

Dados divulgados pela Ouvidoria Municipal de Saúde revelam que o número de reclamações feitas pelos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) contra os serviços, nos quatro primeiros meses desse ano, já superam o índice registrado em todo o ano de 2009. De acordo com as informações, as maiores queixas são contra o mau atendimento prestado, contra a demora no atendimento e a falta de recursos humanos na área médica.

O número chega a 388 reclamações, o que representa 14% a mais do que o indicativo encontrado em 2009, quando foram realizadas 336 reclamações. Em relação à demora nos atendimentos, o quantitativo se iguala aos 85 registrados no ano passado, e as reclamações sobre os horários dos médicos se aproximam – 23 para 26. O dado mais gritante recai na falta de recursos humanos na área médica, que já registra alcança o triplo das reclamações do ano passado, com enfoque maior para a atenção primária, que compreende as Unidades Básicas de Saúde (UBS).

Se analisados de forma geral e relacionados com a realidade do SUS, mais que meros indicativos, os dados refletem a dura vida que o usuário do serviço enfrenta no dia a dia. O não cumprimento dos horários pelos médicos, por exemplo, provoca filas de espera de até duas horas. A própria unidade de saúde informa, sem rodeios, os horários reais que os profissionais da saúde decidem cumprir sua carga horária oficial de trabalho. O constantes atrasos provocam consultas aceleradas, mau atendimento e aumento dos prazos de marcação de consultas.

Segundo informações comprovadas pela Ouvidoria, pelo Conselho Municipal de Medicina, pelo Sindicato dos Médicos e pela Prefeitura de Juiz de Fora, o não cumprimento do horário integral de grande parcela dos médicos do SUS, principalmente nos locais em que o atendimento é especializado, já é um caso antigo e de solução bastante nebulosa. De um lado, os órgãos da classe apontam a falta de responsabilidade dos profissionais com o usuário, que nada tem a ver com problemas pessoais ou profissionais que motivariam os atrasos, além da ineficiência da fiscalização que deveria caber à administração pública. De outro, a Prefeitura busca, como solução, a implantação de um sistema de ponto eletrônico, que deverá oferecer maior rigor e capacidade de punição dos faltosos.

Pam Marechal como principal foco

Segundo a ouvidora Samantha Borchear, a média de reclamações em relação às ausências e atrasos de profissionais da saúde chega a 30 por semana. "Todo dia a gente recebe reclamação de usuário dizendo que o médico deixa a pessoa esperando 1h, ou 2h. É comum ouvir o comentário: 'Espero 2h e me olham em 2 minutos'. As reclamações são padrão e os termos utilizados são os mesmos. Às vezes os médicos nem dão declaração de presença para as pessoas que precisam apresentar no emprego. Chegam e falam: 'O problema é seu".

O secretario executivo do Conselho Municipal de Saúde, Jorge Ramos, tem ciência do problema. Ramos acusa que o problema é frequente e, inclusive, já ocorria em administrações passadas. "Os médicos dos departamentos clínicos especializados não cumprem o horário de trabalho. No Pam Marechal, 80% não cumpre o horário", salienta. Segundo ele, a responsabilidade é da administração, já que é um contrato de prestação de serviço e as punições cabem ao gestor.

O defensor público especializado na área de saúde, Paulo Novelino, também salienta que a questão precisa urgente de uma solução, pois quem sempre sai perdendo é o usuário, que nada tem a ver com o problema. "Eventualmente recebemos reclamações de assistidos em pedidos de urgência e internação. Em conjunto com o Ministério Público, exigimos uma postura do município e mais rigor no cumprimento integral da carga horária. Existe uma perspectiva de instalação do ponto eletrônico. Com isso, o profissional não vai poder se furtar do compromisso de cumprir o horário".

Samantha aponta que os atrasos seguem em escala decrescente no Pam Marechal, que é atendimento secundário, nas UBSs, onde são realizados atendimentos primários, e no Hospital de Pronto Socorro (HPS), com o atendimento de urgência e emergência. A Ouvidoria não recebe só reclamações. Esse ano, 13 elogios a profissionais da saúde foram registrados. No ano passado, foram 33 elogios. "Existem profissionais que atendem com a carga horária correta e ficam indignados com aqueles que não cumprem. O medo é os médicos corretos iniciarem o vício e não cumprirem também", define a ouvidora.

Relatório Quantitativo
Reclamações 2010* 2009
Reclamação mau atendimento 101 123
Reclamação demora em atendimento 85 85
Reclamação de horário de trabalho (profissionais médicos) 23 26
Reclamação de horário ACS- Agentes Comunitário de Saúde 07 16
Reclamação falta de Recursos Humanos na área Médica (Atenção primária) 73 23
Reclamação falta de Recursos Humanos na área Médica (Atenção Secundária) 19 15
Reclamação falta de Recursos Humanos na área Médica (Urgência e Emergência) 51 06
Reclamação falta de recursos Humanos áreas de Enfermagem 06 04
Reclamação falta de recursos Humanos em áreas diversas 11 11
Reclamação falta de especialistas 12 27

*Período relativo de janeiro à abril de 2010
Fonte: Ouvidoria Municipal de Saúde

O SUS é visto como "bico"

Segundo Samantha, muitos médicos consideram o SUS um "bico". "Boa parte dos médicos acha que está fazendo um favor para a população e não quer cobranças. Ouvi de médico que o SUS é um bico que complementa a renda e, com a pressão atual da administração, pendência da sociedade e denúncias, os médicos estão saindo. O sistema está socializado, mas não o recurso humano. Essa é a desertificação profissional da área médica. Baixo salário, agressão e assédio", completa.

O conselheiro e delegado regional do CRM/MG, José Nalon, no serviço público, o médico tem um turno a cumprir. "O fato de não se cumprir é administrativo. Tem que haver advertências, suspensões, penalidades e redução do ganho em virtude da carga horária", sinaliza. O médico também cita o ponto eletrônico como uma das possíveis soluções para o controle maior por parte do gestor. "Acho que isso vai ser um avanço e uma fiscalização natural que poderá trazer penalidades administrativas ao médico e ele, então, vai se preocupar um pouco mais com a cumprimento dos horários."

O presidente do Sindicato dos Médicos, Gilson Salomão, tem consciência do fato e aponta a falta de uma carreira de dedicação exclusiva para os médicos como principal desestímulo da profissão. "O fato de a maioria dos profissionais ter vários empregos explica esses atrasos. Tem que ver direito quem atrasa por atrasar e quem desenvolve um trabalho sério. Mas é preciso levar em conta também a situação dos médicos. Enquanto não tiver um plano de carreira que faça ser desnecessário ao médico ter vários empregos, isso vai continuar acontecendo."

Nalon compartilha a opinião essa opinião, mas salienta que, mesmo sob reclamações de baixos salários e más condições de trabalho, o médico não pode dar o troco servindo mal ao usuário. "O usuário não tem nada a ver com isso. Ele está buscando uma assistência de qualidade e quer que o médico o atenda do jeito que ele necessita. O profissional tem que negociar com sua chefia e, através das instituições representativas, queixar-se das más condições, da má remuneração, sem querer dar o troco no serviço público, provocando imediato prejuízo para o paciente."

Segundo Nalon, a demanda excessiva, o baixo salário e a instabilidade no serviço levam o médico a desvalorizar o serviço público de saúde.

Biometria irá resolver?

Para o defensor público Paulo Novelino, a biometria (ponto eletrônico) poderá ser a solução do problema. "Com a obrigatoriedade, vai haver certamente uma revolução no cumprimento dos horários ou será descontado nos salários. É a única solução para a administração garantir uma atuação de forma eficaz. A gente percebe que a estrutura é ineficaz, mas a expectativa é de que o problema vá se solucionando à medida que o sistema for implementado."

O secretário de Administração e Recursos Humanos da PJF, Vítor Valverde, afirma que o problema é identificado pelo órgão e, quando comprovadas as irregularidades nos horários, o médico é punido imediatamente. "Nunca houve arquivamento nesses casos. Cabe ao gestor o cumprimento dessa fiscalização, mas a cobrança é difícil, principalmente pelo tamanho da rede, não apenas a de saúde, mas de toda a Prefeitura. Todos têm uma parcela de culpa."

Em relação ao sistema de ponto eletrônico, a abertura da licitação para o início da implementação da tecnologia ocorreu na última semana. Segundo Valverde, por exigência feita pelo Ministério Público feita no ano passado, o sistema biométrico será implantado em toda a rede da Prefeitura, ao custo de cerca de R$ 1 milhão. "A implantação vai demorar um ano. É complexo colocar o sistema em toda a rede. O primeiro lugar que irá receber o ponto é a sede da Prefeitura. Depois, será instalado nas unidades de saúde e em outros lugares." Serão dez módulos e o prazo para início depende da licitação. "É um passo gigantesco. É um avanço na política de recursos humanos."

No entanto, para Gilson Salomão, a biometria por si só não irá resolver a questão e pode, inclusive, trazer mais transtornos à população. "A biometria deve vir junto com a criação e estruturação de carreira médica, salários compatíveis com o mercado, condições de trabalho dignas. A situação atual é de pedidos e mais pedidos de demissão e, com esse salário, querer fazer controle rígido, acho que os transtornos para população serão muito maiores. Se tiver a carreira, pode ter certeza que o SUS será outra coisa."


Drama diário

O Portal ACESSA.com esteve no Pam Marechal na sexta-feira, 7 de maio, para averiguar se, de fato, as reclamações sobre os atrasos são reais. Para a infelicidade e protesto de muitos usuários que aguardavam o médico ortopedista chegar, o não cumprimento do horário agendado no documento que garante a marcação da consulta é verdadeiro. Segundo as pessoas que esperavam, é desrespeitoso. O horário do médico, de acordo com a Central de Marcação de Consultas (CMC), era das 13h às 15h, período em que ele atenderia 14 pacientes. No balcão de recepção, a informação era de que o médico só chegaria entre 14h e 14h30. Às 14h, quando o repórter saiu do local, o médico ainda não havia chegado.

A costureira Janete de Fátima esperava há quase uma hora, com a consulta marcada para as 13h. Ela chegou cedo. Ao ser avisada de que o médico só chegaria às 14h, questionou: "Por que marcou o horário das 13h?". De acordo com a usuária, embora ela tenha que esperar o médico, ele não aguarda o paciente e o atendimento é feito de forma apressada. "A gente chega aqui às 15h01 e ele já foi embora. Ele chega às 14h, não olha na cara e nem põe a mão em ninguém ." A usuária diz sofrer ainda com o prejuízo financeiro, pois é costureira e o tempo que perde esperando a consulta poderia ser usado no trabalho. "Vivo do meu trabalho. Poderia estar garantindo o meu no final do mês. O deles [médico] é garantido, o meu não", conclui.

Na mesma situação, Nair Belém Fidelis estava bastante inconformada com a espera sem previsão de fim, pois chegara às 12h. "É uma falta de respeito mesmo. O médico deveria estar aqui para atender os pacientes." Maria Aparecida, agendada para as 13h15, já aguardava há 50 minutos. "É um absurdo." Ela também aponta a rapidez na consulta e não sabe precisar se a causa é o atraso ou se o limite de tempo para o atendimento é que é baixo. "Acho que ele deve cumprir o horário, mas penso que não tem supervisor para isso. Se tem, não faz."

Para o usuário Sidnei José Pereira, a demora já é costume e aponta para o sucateamento do SUS como uma das causas motivadoras. "Normalmente o médico chega de 15 a 30 minutos depois. A estrutura do Brasil já é falida. O médico atende a cem pessoas e tem que trabalhar em quatro, cinco lugares. Não faz uma medicina legal."

Na última quarta-feira, 12, o Portal ACESSA.com retornou ao Pam Marechal para falar com outro médico, que também não estaria cumprindo os horários. Segundo a CMC, o dermatologista em questão tem o horário das 10h às 13h. No entanto, o profissional chegou apenas às 11h30 e saiu às 12h30. Atendeu seis pacientes, metade da média de 12 consultas atribuídas ao período. Abordado, o médico não quis comentar o fato, mesmo depois de ter sido garantido o anonimato.

Os textos são revisados por Madalena Fernandes