O eixo, a Roda, o Dez, a Vez
Nesta transição de ano, estive em dois retiros. Um deles, o Sadhana Camp, apresentava a proposta de ficarmos em silêncio durante todo o evento. Em meio a pessoas iniciantes e experientes em meditação, fiquei acampada em uma casa por 7 dias bem no meio do mato. Foram 8 horas de meditação por dia, intercaladas de apenas três refeições vegetarianas (achei que não ia aguentar de fome, but, yes! Consegui!). Eu bem notei que meninas elegantes se sentavam à mesa na minha frente, mas não era possível ver quem eram, até que o monte devorado no prato fosse aplanado – desse jeito, queridas, eu também consegui! E o sabor dos alimentos? Ah, refeições dos deuses... manjares simples, mas cheios de vitalidade. As garfadas eram pura sensação de plenitude que invadia o coração da gente! Percebi que tantas horas de meditação, Sadhana, controlavam o apetite e ao mesmo tempo aguçavam as papilas gustativas na hora exata. Além disso, creio que a forma como nos alimentávamos era fundamental para essa sensação de completude. O respeito e a gratidão por todos que faziam o alimento chegar até nós, por quem o preparava (enquanto trabalhávamos arduamente nas práticas meditativas), assim como o pensamento espiritual de que tudo é o Grande Amor, uniam-se para transformar os sabores do prato e o ato de comer em imenso prazer e alegria.
Quando retornei do Sadhana Camp, foi difícil me readaptar ao cotidiano urbano. Os sentimentos e as ideias ficaram numa frequência mais sutil. A roda da vida na cidade, porém, tem diversos ritmos e algumas frequências destoam bastante umas das outras. Até retomar a rotina, é difícil reconhecer o próprio compasso na vez de tudo. E para isso, depois de 12 dias longe de tudo, fui me atualizar pela mídia digital. Quanta notícia cabulosa! Logo, fui também para as redes sociais rever os amigos.
No WhatsApp, uma novidade. Recebi o alô de um rapaz boa pinta à bessa... Foto de braços cruzados, olhando de perfil (“marrento”...). Antes de eu pensar: “nossa, tô podendo!”, percebi que ele usava uma camisa de futebol... Daí que podia ser uma pegadinha, porque homens adultos não usam a imagem de um jogador na foto do seu perfil! Ou usam??? Whatever! Abaixei as minhas expectativas. E quando eu abro a mensagem... Não era pegadinha! Mas de qualquer forma, uma surpresa! O meu sobrinho estava usando WhatsApp pela primeira vez e colocou a foto de um jogador, Kylian Mbappé!
Agora já pode usar o celular e me mandar mensagens! Mas por que o meu sobrinho Pedro, de 7 anos, ia mudar de herói, isto é, do Tartaruga Ninja Leonardo, para o Mbappé? E sem passar pelo Batman, que ele gostava tanto? Outro dia ele venerava a galinha pintadinha! Como essas crianças mudam tão rápido!
Essa jovem pessoa se tornou vidrada em futebol, faz pouco tempo e já sabe (quase) tudo do Paris San German, que ele chama de “PSG, tia Shu”.
O jogador devia ser o camisa 10 da seleção. Pra ficar bem na fita com ele, fui me informar quem era a figura vestindo a camisa do PSG. Na verdade, esse jogador era camisa 7 e passou a ser 10 faz poucos dias e aproveitei para dar essa notícia ao Pedro. “Bingo! Ponto pra mim!”. Mas qual é a função do camisa 10? Tem função ou é apenas um número? O que é preciso fazer para merecer vestir esta camisa numa seleção? Eu tinha que saber, se o Pedro me perguntasse. Ora, não pode ser qualquer um! Perguntei para dois amigos meus. Um sabia mais ou menos o que eu e você já sabemos sobre o conceito romantizado desse posto no futebol. Até que o outro, num piscar de olhos, o meu amigo Charles (não o Brown) me mandou dois links (Veja no final do artigo) sobre o significado clássico do camisa 10 e onde está o meu camisa 10. Portanto, em resumo: oficialmente, não há uma função para o camisa dez. Ele pode vestir o número, mas não ser “um camisa dez”. No passado, quem usava essa camisa era sempre um ponta de lança (Zico), hoje pode ser uma atacante (Marta) ou vestir uma camisa 7 (Cristiano Ronaldo) e ser, de fato, um grande 10! Nota 10! Mas na verdade o mais importante é a genialidade do jogador, como diz o meu amigo Robson Leite: o camisa 10 não respeita a física, subverte a química, atropela a matemática, refaz a história! (Confira no final do artigo)
E foi aí que a minha cabeça viajou...
No alfabeto hebraico, o Yod é a décima letra e a menor, porém a mais frequente de todas na escrita. Simboliza o átomo das consoantes, o formato a partir do qual todas as letras começam e terminam. Um mero ponto de energia divina suspenso no ar, que indica a onipresença de Deus. O incessante início e fim de tudo. É a transição e o processo incessante de começar e acabar – queiramos ou não – qualquer coisa. Sugere o mistério em que nascemos, crescemos, casamos (ou não) e morremos; do dia após a noite e da noite após o dia; de um mês após o outro; de um ano após o outro, de que nada é permanente, mas que tudo é inconstância. É a grande dança cósmica!
Logo, comecei a pensar na relação disso com o significado do número 10 na numerologia, no primeiro mês do ano (1+0 =1), na “postura da roda” no Yoga (c’acrasana), na bateria nota 10 do Salgueiro, na música do Chico... “Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião...” Rapidamente vieram na minha memória as notícias da mudança de governo; da permissão de armamento nos nossos lares; das ameaças desavergonhadas a parlamentares de ideologias diferentes; o desrespeito à democracia; notícias de aldeias indígenas pedindo proteção política e jurídica; índices comprovando o aumento do feminicídio, crime ambiental em Brumadinho... Enfim! A Roda girava em alta velocidade como se eu não tivesse saído para lugar nenhum. E onde estava o eixo da roda? SOS eixo! Cadê o eixo da roda? Respira fundo! Qual o sentido de tudo estar nesta grande roda que é a vida tão rápida?
Nessa ciranda mecânica, precisamente, eu não sei. Tem vez que é muito difícil sair dela. Mas relacionar tudo isso com o yod ou com o ponto suspenso da onipresença divina mais a meditação tem tudo a ver. Porque o grande esforço da sádhana consiste em pensar em um ponto. É silenciar a mente para sentir a presença divina. E tão importante quando isso é servir. E ao servir, procurar ver Deus em todas as coisas animadas e inanimadas. A meditação resulta numa paz muito grande, as decisões passam a ser mais assertivas. Nas suas atividades você deve lembrar a todo tempo que Deus é o ato, é quem oferece, é quem recebe. Além disso, apenas o ato de respirar na frequência alfa e silenciar, ainda que pouco, pode ajudar muito. A luta e os deveres do dia continuam, mas a plenitude se aloja.
Pra mim, ser nota 10 ou ser craque, alcançar metas ou fazer gols é o resultado de encontrar o próprio eixo, a presença divina ali. É se colocar numa postura erguida que permita uma visão panorâmica da mecânica da roda ou do jogo. Só então agir. Fazer o melhor incansavelmente dentro e fora do grande giro. Criar boas estratégias na construção das jogadas, buscá-las, antecipá-las. Fundamentalmente, é agir com generosidade no passe, porque ser feliz sozinho não tem graça. Faz parte do processo também treinar o ritmo, a melodia e se entregar. Sobretudo, deixar fluir. Assim, a magia acontece. A realização se torna melhor que o sonho. Mas essa entrega requer coragem.
E quanto às mudanças... Ainda que sejam inevitáveis ou indesejáveis, é bom lembrar que não serão para sempre. Nada é. A vez de cada um também passa. E se aumentamos o valor que damos a cada giro da nossa roda, já começamos a refazer a história.
Até a próxima.
1. O Mistério do Yod
Suspenso no ar, Yod é a menor das letras hebraicas, o "átomo" das consoantes, e o formato a partir do qual todas as outras letras começam e terminam: O primeiro ponto com o qual os escribas primeiro começam a escrever uma letra, ou o último ponto que dão a uma letra sua forma final - é um yod. (Likutei Maharan)
2. Letra hebraico yod a 10.a letra do alfabeto.
3. Benefícios da C’akrasana
4. O cara no espelho e outras histórias pro Robson Leite
5. Texto1: Camisa 10 Clássico. Uma entidade do futebol brasileiro.
6. Vídeo: o camisa 10 clássico acabou?
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