Primeira travesti preta é aprovada no mestrado da UFJF
Repórter
Ao ser questionada quanto seu sentimento em relação à aprovação no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, a técnica em saúde Dandara Felícia Silva Oliveira, 38 anos, diz que “é contraditório, ao mesmo tempo que estou feliz por ser aprovada no mestrado, preciso discutir porque irmãs minhas não acessaram este lugar antes”. Ela é a primeira aluna travesti preta a iniciar estudos na pós-graduação stricto sensu na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Dandara representa ainda a minoria dentro do universo LGBTI+. No Brasil, como ela mesma enfatiza, a vida escolar de travestis, transexuais e transgêneros encerra antes mesmo de completar o ensino médio. Dados alarmantes mostram que a evasão deste grupo chega a 82%, conforme pesquisa conduzida pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Levantamentos da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostram ainda que pessoas trans representam apenas 0,1% do total de alunos das instituições federais de ensino superior.
Os números nos levam a destacar o mérito da conquista de Dandara, mas, ao mesmo tempo, despertam para a necessidade do cumprimento de normas, como a Resolução 12/2015, que viabilizam o acesso de pessoas travestis, transexuais e transgênero ao ensino no Brasil. Ela firma parâmetros para garantir o acesso e permanência de pessoas trans nas instituições de ensino, com intuito de reduzir a discriminação e o ódio dentro das instituições. Entre elas, estão a utilização do banheiro conforme a identidade de gênero de cada pessoa. Em 2018, o Ministério da Educação (MEC) ainda autorizou que alunos e alunas transexuais usem o nome social nos registros escolares em todas as unidades de ensino básico do país.
“Chamo os níveis de evasão de níveis de expulsão escolar. A resolução não é obedecida o que dificulta que pessoas trans terminem o ensino fundamental ou médio e cheguem à graduação. Todas as pessoas transexuais passam por uma condição de disforia de gênero - desconforto persistente com características sexuais ou marcas de gênero; em níveis diferentes, por isso a importância da aplicação da norma”, revela.
As limitações pertinentes à falta de adequação de todo sistema de ensino - que exclui antes mesmo de educar - inviabiliza e limita na base novos roteiros de vida para pessoas trans. Diante desta ausência de direitos, cerca de 90% das travestis e transexuais acabam sobrevivendo da prostituição. Como bem titula a nova estudante no curso de mestrado em Serviço Social, a prostituição não se torna uma escolha, ela é compulsória.
“Por entender de perto toda esta situação, optei por realizar pesquisa qualitativa de como pessoas transgênero são recepcionadas no mercado de trabalho local. Eu sou funcionária pública e me sinto privilegiada, mas 90% estão na prostituição que é lugar de violência imposta”, afirma a técnica em análises clínicas e, atualmente, funcionária pública, com cargo de técnica em saúde do Hospital Universitário, unidade Santa Catarina.
Cotas na UFJF
Na UFJF, o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) é pioneiro na implantação de uma política de cotas para estudantes travestis, transexuais e transgêneros no mestrado e no doutorado. A decisão do colegiado do curso, que também contempla pessoas com deficiência (PCDs), negros (pretos e pardos) e indígenas, foi formalizada em junho deste ano. Em seguida, a mesma medida foi adotada pelo Programa de Pós-Graduação em História.
“Mesmo que todas nós sete alunas pretas não tenhamos sido aprovadas pelo sistema de cotas - fomos aprovadas na ampla concorrência pelo merecimento das notas que tiramos nas provas, nos projetos e nas entrevistas – o fato de existirem as cotas demonstra que naquele lugar ela não será preterida por outra pessoa por conta do racismo ou transfobia, isso é construção de cidadania”, afirma Dandara.
Além das cotas, a discussão continuada dentro dos meios acadêmicos têm se tornado uma porta aberta para construção de novas epistemologias, conforme analisa a técnica em saúde. “Debater LGBTI+ dentro das universidades faz com que a gente construa novas epistemologias tanto de ensino, quanto de prática, ao entender o lugar do outro, como estas pessoas estão se movimentando no espaço-tempo”.
Militância
Dandara Oliveira conta que iniciou na militância em Juiz de Fora em 1999, dentro do Movimento Gay de Minas Gerais, mas se distanciou por considerar "o movimento branco, masculino, cisgênero normativo. Ai você desiste de militar naqueles espaços, depois disso, com o tempo, amadurecendo, vi a necessidade de estar naqueles espaços. Aos pouco fui mudando foco da minha militância para questões transgênero e mulher preta na sociedade, discutindo como ampliar políticas públicas de promoção de cidadania para estas pessoas”.
A força das palavras
Dandara ainda destaca que escolhe as palavras travesti e preta para sua autodenominação com objetivo de desestigmatizar os termos, usados por muitos anos de forma pejorativa pela sociedade.
"Usamos a palavra travesti para desestigmatizar a palavra travesti, visto que houve um processo de colonização da palavra transgênero, da mesma maneira que a palavra preto é extremamente estigmatizada no Brasil por conta do mito da democracia racial e do colorismo. As pessoas tentam se afastar disso usando o pardo. Juridicamente falando, negros compõem pretos e pardos, mas por uma questão de desestigmatização a gente usa a palavra preta, porque somos pretas mesmo. Além disso, a palavra preta foi usada de maneira pejorativa por muitos anos. Reforçar o uso dela de maneira positiva faz com que a gente diminua o uso pejorativo".
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