Daniela Aragão Daniela Aragão 17/02/2016

Caymmi põe a baiana pra rodar

Algumas recordações de infância grudam na memória e, talvez, sessões e mais sessões com um psicanalista consigam anunciar o início de um novelo, que, possivelmente, se embarace em seu desenlance rumo ao infinito. Ontem, na fila da padaria, uma menininha, por volta de uns três anos, me perguntou qual era o sabor do meu picolé. Em fração de segundos me perdi em sua fantasia de bailarina, construída com um murcho tule branco envolto por estrelinhas e sobre um colant cor de rosa. Talvez devido ao calor, sua mãe tenha lhe dispensado do encantamento-sufocamento quente da meia calça e das sapatilhas de meia-ponta. A menininha de coque e gel nos cabelos calçava
sandálias de plástico vermelhas, que deixavam em evidência seus dedinhos dos pés também pintados de vermelho.

A infância se fez presente: nas janelas do apartamento em que morava minha tia Ruth, na Avenida Rio Branco, em Juiz de Fora, eu e minha prima, Aninha, disputávamos a melhor vista do carnaval. Tentávamos captar do alto do sétimo andar a energia proporcionada pelo "tumulto" da concentração, que se instalava logo ali embaixo. Bateria, carros alegóricos, transeuntes bêbados e fantasiados, barraquinhas de vendedores ambulantes e todas as diversidades possíveis. Como eu era três anos mais nova do que a Aninha e, consideravelmente, mais rechonchuda, ela com sua altivez e esperteza, sempre ocupava o melhor lugar em minha frente. Grudava-se na parede junto à janela esticando seus braços longilíneos como tentáculos, postando-se hábil tal qual uma lagartixa. Aninha loura e de tez alvíssima, era uma espécie de pequena Catherine Deneuve, todavia sonhava em desfilar como uma das mulatas passistas. Eu, simplesmente, ignorava todo o gingar das passistas, devido a minha incompatibilidade com a micro indumentária e falta de sincronia com a desenvoltura dos movimentos daquelas dançarinas incríveis. Minha paixão até hoje, orgulhosamente, confessável são as baianas, com suas enormes e arredondadas anáguas que giram compondo lindos desenhos pela pista.

Fantasiar-me de bailarina, havaiana, melindrosa, índia ou cigana me satisfazia, um tempo razoável entre combates de serpentinas e confetes, até que eu, invariavelmente, retornasse com a ladainha de que desejava vestir-me igual as idosas baianas para desfilar com elas. Não havia discurso de papai, mamãe, titia ou titio que tirasse esse sonho de minha cabeça. A solução por eles encontrada foi mandar uma costureira fazer para mim uma fantasia de baianinha. Pensam que me contentei? Chorei de insatisfação e rebeldia diante da magreza de minha saia, que mal encobria os joelhos e nem sequer permitia um movimento como o proporcionado pelas vestes das minhas amadas baianas. Um bustiê de prata e chapeuzinho com um pompom rosa na extremidade davam certa graciosidade a fantasia, que agradava aos meus pais e parentes, mas a mim não.

Nenhum vento havia soprado, ainda, me trazendo a beleza das composições de Geraldo Pereira, meu conterrâneo. "Falsa baiana" só mesmo na interpretação impecável de João Gilberto: "A falsa baiana quando entra no samba/Ninguém se incomoda, ninguém bate palma, ninguém abre a roda, ninguém grita ôba".


Exaustivamente, colocava o disco "Gal Fantasia" para rodar na eletrola naqueles tempos de obsessivo sonho "baianês". Fissurada pelo canto de Gal, tentava acompanhá-la em uníssono, reproduzindo seu timming em cada preciso compasso e divisão. A desafiável voz de diamante cortante de Gal Fatal: "A maré na vazante/Tá querendo enconstar/Tá querendo entregar/Uma estrela brilhante/Caída do mar, ê!/Pelo teu remelexo, ô/Pelo nó nas cadeiras, ah!/Quando põe a baiana pra rodar/ quando põe a baiana pra rodar/ quando põe a baiana pra rodar".

Venho acumulando em meu acervo uma safra de composições de Dorival Caymmi dedicadas às baianas. Até um dia, até talvez, até quem sabe, consiga transformar minhas apreensões Caymianas num pequeno show consagrado a esse criador estupendo. Qualquer coisa que eu tente dizer aqui sobre Caymmi seria chover no molhado. Convém considerar as reflexões tão sábias e profundas da jornalista e neta, Stella Caymmi; do pesquisador e escritor, Francisco Bosco; do seu filho, Danilo Caymmi e do meu amigo e pesquisador musical, Júlio Diniz, entre outros que se debruçaram na decifração da obra de Dorival Caymmi.

Me inquieta e seduz o mergulho no prosaico da vida, que Caymmi sabe fazer de seu modo único e insubstituível e que nos devolve repleto de malícia, suavidade, sensualidade e concisão lírica: "Lá vem a baiana/ De saia rodada, sandália bordada/Vem me convidar para dançar/Mas eu não vou/Lá vem a baiana/Coberta de contas, pisando nas pontas/Achando que eu sou o seu iôiô/Mas eu não vou". "O que é que a baiana tem?/Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem! Corrente de ouro, tem! Tem pano – da – Costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem graça como ninguém". "No tabuleiro da baiana tem/vatapá, carurú, Mungunza tem Ungu pra io io/Se eu pedir você me dá/o seu coração, seu amor de ia ia/ No coração da baiana tem/Sedução, cagerê, ilusão, candomblé".

Talvez poucos saibam, mas o revirar dos olhinhos acompanhados pelos trejeitos que consagraram Carmem Miranda foram inventados por Dorival Caymmi, que colocou nossa portuguesa, "baiana", pra rodar e encantar os Estados Unidos.

Dentro de mim mora um anjo, muitas baianas e um Caymmi sublime.


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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