Da capacidade de transgredir

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Da capacidade de transgredir
Ivan Bilheiro 24/01/2015

Da capacidade de transgredir

É comum vermos tentativas de catalogar as pessoas. Todos devem seguir uma moda. Ninguém pode fazer humor de forma diferente daquela politicamente correta. Bons filmes são assim, música boa é de tal forma, etc. Essa uniformização, muitas vezes, se converte em agressão: ataques são feitos aos que não seguem os padrões.

Há quem diga que a agressividade faz parte da natureza humana. Que é algo do instinto, e que é impossível se desvencilhar dela. Pode ser. Até mesmo o biólogo Desmond Morris, estudando o macaco nu – expressão pela qual ele nomeia este animal diferente que é o homem – apresentou o curioso paradoxo: "É um fato comprovado que os intelectuais mais transcendentes se tornam muitas vezes violentamente agressivos quando discutem a necessidade urgente de suprimir a agressão".

Pois bem. A agressão é, por definição, uma forma de ataque. Um bater de frente. E não é sem motivo que uma palavra próxima dela seja a transgressão. Muitas vezes, entende-se a transgressão também como uma forma de violência. Daí a relação das palavras. Mas há uma diferença entre esses termos. Se a agressão é um ataque direto, a transgressão é uma mudança. Transgredir é ir além dos limites estabelecidos: por isso, tem proximidade com a agressão, porque rompe o estabelecido. Mas não tem o caráter violento, e por isso pode ser vista com bons olhos.

Ter capacidade de transgredir é ter capacidade de fazer o incomum. Ser anormal. Ir além do que, geralmente, as pessoas fazem. É claro que existe aí algo de violento: rompe-se um padrão, desfazem-se fronteiras, mas não com o puro objetivo de atacar, de ir contra. Simplesmente tenta-se buscar o novo, o incomum. A base da inovação, na verdade, está na transgressão: não se pode ser inovador fazendo o habitual. É no diferente que se encontra a novidade.

O filósofo Aristóteles dizia, séculos antes da nossa era, que as virtudes devem ser adquiridas com o hábito, porque elas não vêm com a natureza do homem. Existem coisas que todos nós partilhamos porque é da estrutura humana: sermos mortais, por exemplo. Outra coisa é adquirir virtudes. Nem todos são éticos. É preciso sempre se exercitar na ética para se manter assim. A mesma coisa acontece com a capacidade de transgredir. Render-se ao hábito, ao comum, é um caminho relativamente tranquilo. Mas a inovação e a descoberta de algo melhor (ou o aprendizado com algo que não necessariamente seja melhor) vem com a ousadia do ir além, de atravessar fronteiras – isso é a capacidade de transgredir.

Ninguém inova no comum. É impossível descobrir o novo no habitual. Só a transgressão pode levar ao diferente. Temer o diferente e canalizar a agressividade contra os que nele se aventuram é uma forma tão antiga quanto pequena de impor seus padrões. Aceitar o diferente é fundamental neste processo, porque mostra o reconhecimento por essa capacidade de transgredir. Exercitar a transgressão, portanto, é uma forma de romper os padrões dessa desastrosa característica humana: a agressividade. Às vezes parece mesmo que a coisa mais transgressora que alguém pode fazer é aceitar alguém fora do padrão.


Ivan Bilheiro é professor de Filosofia e Sociologia. Licenciado em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF), bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), instituição na qual cursa o Mestrado em Ciência da Religião. É, também, especialista em Filosofia pela Universidade Gama Filho (UGF) e em Ciência da Religião pela UFJF.