Raptaram Vinícius de Moraes (2)

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O leitor de Metas sentiu o drama deste cronista descrito aqui, neste espaço, na edição anterior. Esqueci no ônibus da linha Terminal da Fonte - Rua Itapuí, Garcia, onde moro, o livro Vinícius de Moraes - entrevistas.
 
Tinha sido tomado por empréstimo da Biblioteca Municipal Fritz Müller. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Sou usuário da instituição da Rua das Palmeiras faz quase 60 anos. E espero que tenha sido o último esquecimento de alguma obra apanhada lá.
Chegando a casa, percebendo o ocorrido, corri à biblioteca contando o acontecido e pedindo providências. Foi elaborado um cartaz com os dizeres, mais ou menos assim: "Perdeu-se livro. Foi esquecido no ônibus tal a obra Vinícius de Moraes - entrevistas. Quem a encontrar, favor entregá-la na secção Achados e Perdidos do Terminal da Fonte.".
 
Ontem, inda vi o cartaz afixado no vidro atrás do motorista. Dia sim, dia também, compareci aos achados e perdidos (as atendentes não podiam mais me ver): já diziam: - Lá vem o homem do livro! 
 
São 5 da madrugada do dia 8 de maio, sexta-feira, e a obra do "poeta das mulheres" não me chegou às mãos, ainda. As esperanças de tê-lo de novo se diluíram. Mesmo que um amigo, condoído, quisesse adquirir um exemplar para amenizar minha dor, não o conseguiria. Editado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, não tem venda comercial. Foi destinado a órgãos públicos, como bibliotecas de todo o Brasil.
 
Uma amiga, em dia de crises nos rins, arriscou um palpite: - "Desiste, Tessa. A esta altura, já devem estar utilizando as páginas como papel higiênico." Pensei com meus botões: - É o cúmulo dos cúmulos. Usá-lo pra limpar exatamente aquele lugar é inadmissível. Afinal, nós todos temos uma moral. O Vinícius tinha tantas...
E cheguei à conclusão que põe por terra o dito atribuído a Monteiro Lobato: "No Brasil, só não se roubam duas coisas: enxada e livro.". Roubam sim, até livros, e o cidadão (ã) que o reteve, faça bom proveito, demonstra bom gosto em termos de leituras.
 
Uma coisa chama a outra: Aos vinte e poucos anos, aproveitei-me da distração do funcionário da Biblioteca da Rua das Palmeiras e levei pra casa (morava inda na Alameda Rio Branco) dois livros: Mein Kampf (Minha luta), de Adolf Hitler, escrito na prisão e Um punhal nazista no coração do Brasil. Neste, um militar relaciona os simpatizantes do nazismo agindo em Blumenau e cidades vizinhas. Em questão de minutos, um funcionário da entidade, Francisco Filgueiras, batia a minha porta exigindo a pronta devolução dos volumes. O primeiro nunca cheguei a ler, mas deliciei-me com o segundo. Norton de Azambuja, quando estudava medicina em Petrópolis, surrupiou-o da biblioteca da faculdade. E mo emprestou. Foi devolvido, é claro.
 
Revoltado com a ação, dirigi-me à sala do professor José Ferreira da Silva, diretor da Fundação Cultural. E ele me disse que as obras constavam do índex da biblioteca. Não eram aconselháveis para um jovem como eu. Observei então, em suas estantes, livros de Jorge Amado e Adelaide Carraro. Admiti seu pudor de censurar a leve pornografia da autora. Mas fiquei com o queixo lá em baixo, ao perceber o veto às criações do maior escritor baiano, com fama internacional. Lá estavam Gabriela, cravo e canela, Capitães de areia, Dona Flor e seus dois maridos, Tieta do agreste e outros títulos. Justificou a proibição: "Os palavrões do Amado me causam urticárias constantes e perenes e brotoejas no pescoço.". Inda bem que vivemos em outros tempos. A censura mostra os dentes ainda, mas vai cedendo, cedendo, mesmo que, aos poucos e devagar. (Final da novela).