Juliano Nery Juliano Nery 29/12/2012

Por um copo de cerveja

Ouro PretoFoi na rua Direita, ladeira marcante de Ouro Preto, que rolou a abordagem. Com uma bata surrada, boca desdentada e cabelo comprido e amarfanhado, arrastando um bom portunhol, interrompeu meu gole na cerveja gelada, ali no canto da calçada, no lado de fora de um bar. "Su corazón está partido por una loira..." Olhei para os lados, tentando ver se era comigo que ele falava. Na falta de alguém mais próximo, já que meu amigo, o economista Enrico Loures, havia ido ao banheiro, perguntei. "É comigo?" Ele chegou mais próximo do meu rosto e disse, estufando as veias do pescoço e com o sininho da garganta à mostra, "Estás sofrendo por amor!"

Logo pensei que pudesse se tratar de mais uma dessas marcantes intervenções urbanas do pessoal das artes cênicas, comum nas ruas barrocas da nossa antiga Vila Rica, mas, comecei a me preocupar, quando ele pediu para ler as minhas mãos. "Não há necessidade disso, meu caro..." Diante da minha negativa, ele foi além e me refutou. "Temes que descubra sus tormentos!" Fui ficando um pouco envergonhado com a veemência das palavras daquele possível adivinho, tamanha era a potência do seu aparelho vocal, o que começou a chamar a atenção dos passantes. "Cara, estou tranquilo. Não tem loira e nem morena me atormentando..." Ele mudou de postura, revelando um ar de charlatanismo. "Entonces! Necessita de amor!"

Se no início uma loira me trazia sofrimento, agora, eu necessitava de um amor. Foi ali que me senti mais tranquilo para continuar a conversa com o rapaz, que pelo visual um pouco castigado, aparentava já passar da meia idade. Perguntei de onde era e me disse que havia vindo do Chile há muito tempo e que gostava de Minas Gerais. "Soy minero, uai!" Sobrevivia do artesanato que vendia na rua, o que parecia ser mais rentável do que suas adivinhações sobre o passado amoroso dos visitantes de uma das mais belas cidades turísticas do Estado.

"Mas, fale mais sobre a loira que me faz sofrer ou sobre minha falta de amor!" E dei corda para que ele pudesse discorrer sobre o tema, talvez amparado em filosofias ao melhor estilo Julio Iglesias. Ele gostou da ideia, diminuindo o tom de voz, mas, falando e falando e falando... E começou a atirar perdigotos por todos os lados e a dar tapas no meu ombro, enquanto falava. Dois crimes inadimissíveis em uma mesma frase. Era momento de parar de dar corda. Peguei a esquecida cerveja no canto de uma calçada. "Cara, esse papo não me convenceu. O que você quer, afinal, com essa conversa toda?" Ele abriu o sorriso solto pela falta de dentes. "Um copo de cerveza!"

Fiquei revoltado. Apareceu com pinta de profeta e queria somente um copo de cerveja. Esperava mais! Queria que ele dissesse que queria mudar o mundo, pregar o desapego ou qualquer coisa do tipo... "Infelizmente, fica para uma próxima", disse, andando em outra direção, tão irritado quanto ele ficou com minha negativa. Mas, e o Enrico Loures? – Com aquela história, havia me esquecido que ele ainda não havia retornado do banheiro. Voltei para procurá-lo. Quando, enfim, o avistei, do lado de fora do bar, com uma garrafa na mão, percebi que ele já estava acompanhado: era o pseudo-profeta. "Su corazón está ferido..."

Juliano Nery acredita que Minas Gerais é mais do que um Estado. É um estado de espírito. O município de Ouro Preto, pode ser encontrado em 20° 23' 08" S 43° 30' 29" O



Juliano Nery é jornalista, professor universitário e escritor. Graduado em Comunicação Social e Mestre na linha de pesquisa Sujeitos Sociais, é orgulhoso por ser pai do Gabriel e costuma colocar amor em tudo o que faz.

* Ilustração: Lucí Sallum

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