Daniela Aragão Daniela Aragão 31/03/2014

Em uníssono com os pássaros

daniela"Pelas cores viva a vida/verde céu e mar/planta bicho gente agente/cuida sempre para preservar/a cada metro verde a vida/brota encanto de cor/salve a mata ver de perto/ homem que precisa cultivar/água limpa fruta boa/vento forte vai ficar/vida que vai renascer". Estes versos entoados pela pulsação melodiosa de um coral afinadíssimo e belo ilumina minha manhã, enquanto luto inutilmente para aplacar a barulheira que vem da construção em frente à minha casa. Pedras sobre pedras, tijolos sobre tijolos, poeiras sobre poeiras anunciam o encerramento de uma vista que me trazia ao longe um fragmento da montanha do Cristo Redentor. Como o cenário dessa construção não é nada inspirador, peço licença ao maestro soberano e me aproprio de sua paródia inesquecível "Minha janela não passa de um quadrado/A gente só vê Sérgio Dourado/Onde antes se via o Redentor/É, meu amigo/Só resta uma certeza/É preciso acabar com a natureza/É melhor lotear o nosso amor". "Com força e com vontade a felicidade há de se espalhar por toda a eternidade" canta tão bravamente Ivan Lins, enquanto penso no valor de um resto de verde a fazer a alegria de nossa Manchester mineira até a eternidade de sua existência.

"Mata do Krambeck", composição de Estevão Teixeira é uma digníssima e elevada homenagem a essa mata que finalmente ganha sua liberdade de existir e respirar tranquilamente, após quase ter sido transformada numa construção de doze torres de edifícios de um condomínio de luxo. "Deixa o mato crescer em paz/Deixa o mato crescer/Deixa o mato/Não quero fogo, quero água/Escuta o mato crescendo em paz/Escuta o mato crescendo/Escuta o mato/Escuta". Tom agora se despede com uma entre suas tantas canções primorosas da safra "terra brasilis", enquanto vou me inundando pela sonoridade jobiniana, vilalobiana, edulobiana, brasileiríssima do mais novo trabalho de Estevão Teixeira.

Beleza bonita de ver, sentir e se deixar levar esse disco do flautista, compositor e arranjador Estevão Teixeira. Nove composições de autoria própria com o acréscimo apenas de uma interpretação magistral da música "Guiguita", de Jaime Alem, mostram o trabalho de um artista maduro, que percorre com desenvoltura e extrema sensibilidade os meandros sonoros de nossa tão rica terra do Pau Brasil. Este disco traz na capa apenas o nome de seu autor "Estevão Teixeira", emoldurado pelo delicado mosaico de Portinari recriado pelas mãos dos designers João Paulo Lopes e Thais Vandanezi.

Trata-se de um trabalho que celebra sua intensa brasilidade por meio de homenagens de uma intensidade lírica comovente, como "Alegria de Paulo Freire", composição instrumental que traz o arranjo arrojadíssimo do violonista Domingos Teixeira. Um choro que contagia com sua alegria rítmica intensificada pela participação de um naipe poderoso de músicos como Cristovão Bastos (piano), Jurim Moreira (bateria), Adriano Giffoni (baixo) e Marcos Suzano (pandeiro). O poeta Murilo Mendes renasce com sua vastidão e densidade em "Lembranças de Murilo Mendes", uma ode a afabilidade e nobreza de sentimentos e sentidos. A flauta de Estevão passeia e dialoga em elevação transcendente com o belo arranjo de cordas. Alguns compassos adiante o piano econômico e personalíssimo de Cristóvão Bastos pontua o clima introspectivo que se realiza em plena efusão lírica. Destaque para a condução do oboé de Carlos Ernest Dias reforçando a construção de uma atmosfera de feição quase etérea. Certamente bem do alto de sua cosmovisão de infinitos surrealismos, Murilo abre devagarinho sua janela do caos para se alimentar de tão saboroso néctar melódico.

A música de Estevão traz a riqueza de um Brasil em suas variadas vertentes. Ressalta em sua criação a bagagem de um criador que absorveu substancialmente o legado erudito, adquirido na formação mais ortodoxa que percorreu conservatório, faculdade de música e outras demandas. Ao mesmo tempo sobressai uma riqueza rítmica advinda do contato com uma multiplicidade de ritmos brasileiros, acrescidos ainda pela apreciação notória pelo jazz, que ele faz questão de deixar bem evidente.

Estevão é um músico que continuamente reafirma suas raízes, puro mineiro das Gerais que segue seu percurso pelo mundo, mas não abandona sua terra: Juiz de Fora. "Floresta-tema do dia" homenageia o bairro de sua cidade responsável por suas primeiras lições de flauta. Bairro também de Kim Ribeiro, outro ilustre flautista. Canção alto astral e repleta de swing, em que o músico extrai da floresta sua beleza perfumada com gosto de orvalho e eucalipto. Puro frescor verdejante emana de "Floresta- tema do dia".

Certeiros mergulhos introspectivos de plena densidade lírica compõem a grandiosidade deste trabalho de Estevão. A tão singela valsa "Adelina Emília", composta em homenagem à sua tia é de uma beleza singular. O arranjo iluminado de Cristovão Bastos transporta-me para um cenário idílico, uma tela de Renoir. Ouvir "Estevão Teixeira" é deixar-se conduzir por uma viagem de plena poesia e delicadeza, não duvido de que ele toca na sintonia dos astros, das flores e dos pássaros.


Foto: Arquivo Pessoal


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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