Daniela Aragão Daniela Aragão 21/05/2016


A verdade não rima

Ao inesquecível Fernando Faro

“A verdade não rima/ a verdade não rima/ a verdade não rima”. Nem sempre é fácil domar fragmentos de sons ou pedaços de canções que invadem, obsessivamente, minha audição interna. “É o som de dentro”. Assim disse, certa vez, o maestro Villa Lobos, ao deixar em estado de êxtase um expectador, diante de sua concentração e habilidade criativa. Pois nada comprometia o seu mergulho sonoro, nem mesmo o entorno barulhento da orquestra de sons desordenados dos seus filhos.

É habitual a imersão, quase cotidiana, de inesperados sons em minha audição interna. Eles não cessam enquanto não invisto um pequeno tempo de autorreflexão para entender seu real sentido. Creio que o maior dom que Deus me deu nessa vida foi o de registrar letras de canções. Não consegui fazer desta “vocação” nenhuma riqueza, e nem sei se há alguma vantagem pragmática. A palavra cantada, sobretudo, se fixa com muita facilidade em minha mente. Se me faço entender, meu arquivo musical funciona, instintivamente, na busca de palavras ou versos que sintetizem a emoção do instante sentido por mim ou compartilhado com outrem.

O som estilhaçado que me envolve, hoje, é da música Onze fitas, de Fátima Guedes, e a voz que o conduz é de Elis Regina, no 13º Festival de Jazz de Montreaux. Com um caxixi na mão e acompanhada pela fabulosa banda composta por César Camargo Mariano, Hélio Delmiro, Chico Batera e Luizão Maia, Elis cantava sobre os tempos sombrios que ameaçam nos tomar novamente: “Esses tempos não tão pra ninharia/Não fosse a vez daquele um outro ia/Deus o livre morresse assassinado/Pro seu santo não era um qualquer um/Três dias num terreno abandonado/Ostentando onze fitas de Ogum/Quantas vezes se leu só nessa semana/Essa história contada assim por cima/A verdade não rima”.

Naqueles tempos de chumbo, a Pimentinha e o poeta Carlos Drummond de Andrade foram, equivocadamente, enterrados por Henfil, no “Cemitério dos mortos vivos”. O local era reservado aos que o cartunista considerava alijados da luta, ou coniventes com o sistema. Henfil, tempos depois, reconheceu seu erro e retirou a cantora e o poeta do espaço que não os pertencia. “Perdoem a falta de folhas/Perdoem a falta de ar/Perdoem a falta de amigos/Perdoem a falta de escolha”.

Elis Regina ficou imortalizada no coração, nos ouvidos e no sonho esperançoso de muitos brasileiros, como a mulher que carregou com sua voz o hino-estandarte da alforria. O bêbado e a equilibrista, composto com a arma lírica e combativa de João Bosco e Aldir Blanc: “Meu Brasil/Que sonha com a volta do irmão do Henfil/Com tanta gente que partiu/Num rabo de foguete/Chora/A nossa Pátria mãe gentil”.

Num país destituído de memória, percorro as sobreviventes lojas de discos, sebos, o MIS-Museu da Imagem e do Som (agora disponibilizado parcialmente em veículo digital) e o carnavalesco Youtube, que traz muito lixo, mas também muita qualidade resgatada.  

Todavia, para aqueles que anseiam por vasculhar e conhecer a história do nosso cancioneiro, durante as últimas quatro décadas, é imprescindível a visita ao vasto trabalho realizado pelo jornalista e produtor musical, Fernando Faro, que nos deixou no dia vinte e cinco de abril.

Eis um profundo conhecedor da nossa música.

Fernando Faro trabalhou em rádio e TV: Tupi, Rede Globo, Bandeirantes, Tv Record, entre outras. Seu programa, “Ensaio”, mostra com competência e extremo cuidado, sua dedicação para registrar a singularidade do pensamento e da criação de nomes consagrados da Música Popular Brasileira. Iniciado em 1969 na extinta TV Tupi, o “Ensaio” migrou, posteriormente, para a TV Cultura, contabilizando mais de quatro décadas de plena atividade.

O extenso arquivo musical, produzido por Fernando Faro, elenca cerca de oitocentos depoimentos concedidos por artistas da grandeza de Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Dominguinhos, Caetano Veloso, Nana Caymmi, Elis Regina, Nara Leão, Elza Soares, Roberto Menescal, Gonzaguinha, Baden Powell, Tim Maia, entre tantos, que vão além da MPB mais clássica, como compositores e intérpretes de gêneros como o rock e o pop.

A estética do programa manteve-se, irredutivelmente, fiel a sua grife, que privilegia um clima introspectivo, em que só se ouve a fala do entrevistado. Fernando Faro, com seus olhos azuis e voz pausada, manteve-se sempre escondido por detrás das câmeras e holofotes. Imagino que se postava, usualmente, de frente para o artista, com sua forte presença de entrevistador. Atravessou nosso mundo de exibicionismos e closes, sem colocar a sua face à vista. Optou por permanecer no “anonimato” da invisibilidade, deixando sempre o seu convidado ser a luz do instante. Desta forma, soube valorizar e extrair riquezas dos artistas tímidos, deixando-os à vontade, a exemplo de Milton Nascimento.

O clima meio noir que revestia a atmosfera do cenário, fomentava a espontaneidade dos entrevistados. Por vezes, instigado por Faro, o artista realizava um mergulho proustiano e resgatava do fundo de sua memória uma canção que o marcara na infância. Inesquecível rever Nara Leão cantando com suavidade e à capella a canção Soneto, de Chico Buarque. Inesquecível encontro entre o compositor Cartola e a jovem estreante Lecy Brandão. Inesquecível preciosidade, Dorival Caymmi com sua voz grave e seus olhos inquietos. Inesquecível Aracy de Almeida interpretando Palpite Infeliz. Inesquecível Moraes Moreira com sua tão delicada Acabou Chorare. Inesquecível Ivan Lins, muito jovem ao piano, demonstrando sua assinatura num arranjo singular para Avarandado.
Inesquecível o legado que nos deixa Fernando Faro.


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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