Os tantos blues de Sueli Costa

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Os tantos blues de Sueli Costa
Daniela Aragão 9/9/2013

Os tantos blues de Sueli Costa

Recebi o CD Amor Blue, de Sueli Costa, enviado pela própria. É luxo só, já dizia Ari Barroso. Coloquei logo o álbum para tocar e fui folheando o encarte, tomando um primeiro contato/impacto com as letras, os músicos, as fotos. Um clima de leveza e plenitude criativa/existencial já se anunciava na foto da capa, onde Sueli sorri feliz e vislumbra o todo-presente-futuro: "Vê de longe a vida/ nunca a interrogues/ a resposta está além dos deuses" (Fernando Pessoa, musicado por Sueli).

Uma das maiores compositoras da Música Popular Brasileira, Sueli Costa segue a linhagem gloriosa de nomes como Chiquinha Gonzaga e Dolores Duran. Nascida no Rio de Janeiro, mas criada em Juiz de Fora, essa filha de Dona Maria Aparecida Costa, uma exímia pianista de ouvido absoluto, aprendeu a tocar piano antes mesmo de se alfabetizar.

Música pura, pura música: Dona Maria Aparecida dizia qual era a nota que a chaleira emitia quando o café estava bem quente. Sueli herdou da mãe o talento e a garra. Recordo-me de Dona Maria, já idosa e com brilho nos olhos, tocando Summertime de Gershwin e me falando de cada nuance de suas composições.

Tal mãe, tal filha. As canções de Sueli Costa trazem tons jobinianos e ares villalobianos. Parceira de Cacaso, Paulo César Pinheiro, Fausto Nilo, Abel Silva, Ana Terra, Aldir Blanc, entre outros, a sua trajetória demonstra um compromisso irredutível com a qualidade. Por exemplo você, gravada por Nara Leão em 1967, foi a primeira composição de Sueli Costa levada ao grande público. Em seguida vieram clássicos como Vinte anos blue, Jura Secreta, Face a Face, Amor Amor, Coração ateu e Dentro de mim mora um anjo.

Elis Regina, Alaíde Costa, Ângela Ro Ro, Gal Costa e tantos outros grandes nomes já gravaram suas canções. Mas Nana Caymmi, Simone e Maria Bethânia são as mais constantes intérpretes de Sueli. Coração ateu ficou conhecida nacionalmente na voz de Bethânia, ao fazer parte da trilha da novela Gabriela, em 1975.

Amor Blue, é uma exaltação a beleza. Comemorando quarenta anos de carreira, Sueli Costa lança este trabalho independente, sob o patrocínio da Lei Municipal Murilo Mendes, de Juiz de Fora. Em plena maturidade e frescor criativo, a compositora assina as doze composições do CD. Algumas somente de sua autoria, outras com Paulo César Pinheiro, Luiz Sérgio Henriques, Abel Silva e outros parceiros.

Este é o CD "mais pra cima" de Sueli – e pela primeira vez a artista assume o piano em todas as faixas. Um piano preciso, minimalista, jobiniano. Embora não se considere uma intérprete – "Não, não sou cantora, não. Deus não me deu essa graça. Mas mostro as minhas músicas. Não pretendo ser mais do que sou" – neste Amor Blue Sueli Costa canta muito e muito bem, com a emoção e sabedoria de quem se sabe dona de cada fraseado.

Sempre achei que o compositor, qualquer compositor, é aquele que melhor sabe interpretar suas próprias canções – não importa se não possui timbre bonito ou grande extensão de voz. Vale a emoção e a verdade. Prefiro ouvir Cartola por Cartola e Tom por Tom, com seu timbre grave e sua respiração ofegante.

Em Amor Blue predomina uma atmosfera romântica e poética, muitas vezes nostálgica, como em Outra vez, nunca mais, que tem letra de Abel Silva: "Outra vez/ Eu me sento aqui neste bar/E o piano inicia a sessão/ Como um filme que vai começar/ Outra vez/ A canção diz que eu vou te amar/ E a bebida recria a ilusão/ Nunca mais, coração/Nunca mais/ Quem levou/ Seu perfume na brisa do mar/ Seu sorriso acendendo o verão/ Como tudo acabou..."

Composta para o filme Apolônio Brasil, de Hugo Carvana, a canção revisita o tom boêmio das noites enfumaçadas, regadas a muita bebida e promessas de amor. E passa um clima de Altos e baixos, sua parceria com Aldir Blanc: "Foram discos demais/desculpas demais/ já vão tarde essas tardes e mais/tuas aulas, meus táxis/ Uísque, dietil, dienpax".

Literatura: parceria de afetos

Desde o início de sua carreira, Sueli Costa mantém uma relação de afeto com a alta literatura, tendo musicado poemas de Fernando Pessoa e praticamente todo o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O projeto do disco em homenagem à poeta do Romanceiro permanece inédito há mais de três décadas, face a problemas com o espólio. Fico imaginando que disco maravilhoso seria esse, com Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Maria Bethânia, Caetano Veloso e outros mais dando vida e singularidade a cada nota de Sueli, a cada verso de Cecília.

Vale destacar ainda em Amor Blue a bela música composta para o poema Sim, sei bem, de Fernando Pessoa. Um arranjo minimalista, onde somente o piano da compositora acompanha a voz vigorosa de Maria Bethânia. O timbre grave de Bethânia imprime força aos versos do poeta, enquanto o piano de Sueli segue suave, perfeito: "Sim, sei bem/ Que nunca serei alguém/ Sei, de sobra,/ Que nunca terei uma obra/ Sei, enfim,/ Que nunca saberei de mim/ Mas agora/ Enquanto dura esta hora/ Esse luar, estes ramos/ Essa paz em que estamos/ Deixem-me crer/ O que nunca poderei ser".

Uma das parcerias mais férteis de Sueli Costa se deu com o poeta e letrista mineiro Antônio Carlos de Brito, o Cacaso (1944-1987). O lirismo das letras de Cacaso fala de amores em suas várias instâncias. Amor inquieto, instável, perturbador como na consagrada Amor Amor, gravada pela própria Sueli em seu segundo disco: "Quando o mar/ Quando mar tem mais segredo/ Não é quando ele se agita/ Nem é quando é tempestade/ .../Quando o amor/ Quando o amor tem mais perigo/ Não é quando ele se arrisca/ Nem é quando ele se ausenta/ Nem quando eu me desespero/ Quando o amor tem mais perigo/ É quando ele é sincero."

O que mais impressiona nas composições de Sueli Costa é o depuramento, aliado a simplicidade. Quando faz letra e música dificilmente se encontra um refrão: seus desenhos melódicos são elaborados mas enxutos, sem excesso. A compositora mira o futuro em Amor Blue, apostando em três talentos da nova geração: Fernanda Cunha, Daniel Gonzaga e Celso Fonseca. A carioca Fernanda Cunha é a grande revelação do cd ao interpretar Luz da esperança (Sueli/ Carlinhos Vergueiro). Ela é uma cantora com um pé no jazz e outro na MPB, e sua divisão faz lembrar muitas vezes a grande Áurea Martins.

Daniel Gonzaga é filho de Gonzaguinha, o timbre é idêntico ao do pai, mas a emoção é única. Ele interpreta Calma, parceria com Paulo César Pinheiro. Salta aos ouvidos a beleza da guitarra e do violão de Zé Carlos, fazendo contraponto com o piano de Sueli e o baixo de Jorjão Carvalho.

Falar dos músicos que acompanham o cd daria um texto à parte. Jorjão Carvalho (baixo), Robertinho Silva (bateria), Gabriel Grossi (guitarra), Carlos Malta (sax), Zé Carlos (violões e guitarras), Yura Ranevski (cello). É tocante também o arranjo elaborado por Sueli para a canção Sem mistério, parceria inusitada com Ana Maria Bahiana. Entre as doze composições do cd, tenho essa como a minha favorita.

A letra de Ana Maria Bahiana, repleta de sugestões imagéticas, é um convite ao mergulho no eu profundo: "O meu coração/ É um aquário claro/Sem nenhum mistério/ Para você ver/ O meu corpo todo/ É uma retina/ Coisa cristalina/ para o amanhecer/ (...) E eu te chamei/ Para vir comigo/ E abrir as asas/ E molhar os pés/ E te convidei/ Para o jogo todo/ De cristal e prata/ Do nascer do sol". A abertura de Sem mistério é pungente: Robertinho Silva com a vassourinha, suave, cool, dialoga com o peso do baixo de Jorjão Carvalho e a guitarra à la Toninho Horta de Zé Carlos.

Amor Blue é um convite à paixão, a ficar apaixonado, sofrer por amor, acender mais um cigarro e pedir, quem sabe?, a derradeira dose. Sueli Costa é daqueles tempos felizes e "politicamente incorretos" – quando se cantava fumando e se bebia cantando. Um brinde então a Amor Blue. Tintim, Sueli!


Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.